Sobre a banalização da morte de bezerros

Foto: Unparalleled Suffering

Há algum tempo, assisti ao filme “The Dry”, protagonizado por Eric Bana. Duas cenas chamaram-me a atenção para escrever este texto, porque em duas fases da vida o protagonista depara-se com dois bezerros mortos – um jogado em frente à sua casa e outro, décadas depois, jogado sobre o capô de seu carro.

O corpo sem vida do bezerro, um subproduto da indústria leiteira, é escolhido para transmitir uma mensagem de assassinato. É a espoliação de vida do corpo não humano uma representação metafórica de uma crença na consumação de um homicídio cometido décadas antes. Ou seja, mata-se um animal bem jovem em referência à morte de uma adolescente.

Mas o que representa dois assassinatos não humanos para lembrar um assassinato humano senão que o primeiro tinha uma dimensão de importância que os outros só teriam como construção simbólica em torno de uma ideia dissociada de suas próprias mortes?

O corpo do bezerro, remetendo à outra morte é também uma negação de sua condição finda, do perecer pela violência para remeter ao não ser. A surpresa do corpo sobre o capô é sucedida por uma fala que evoca a preocupação com os substratos indesejados daquele corpo, quando um personagem diz algo como: “Não se preocupe que limparemos.”

Assim o limpar conecta-se ao desvalor do animal em relação ao veículo, uma dimensão de incômodo que pouco tem a ver com o animal e mais com a mensagem e com os resíduos resultantes de seu violento passamento.

Mesmo que o corpo trouxesse sangue, expressando vulnerabilidade também pela posição corporal, a notoriedade ganha força não pelo que expressa o corpo não humano, mas pelo que não expressa, porque é usado para mimetizar uma morte humana.

Há nisso a “supressão não humana” associada aos normalismos da descartabilidade que permitem uma artificialidade, porque “o que interessa não é o que apresenta-se aos olhos”, embora possa incomodar não pelo que é, mas pelo que deixa, e sim o seu caráter evocativo – de um outro, humano.

Ademais, a ausência de reprovação à morte do bezerro, como expressão do comum do supremacismo humano, tensiona a reflexão sobre o que são e o que representam numa insidiosa desconexão os subjugados corpos não humanos.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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