Demanda por carne prejudica vida silvestre e aproxima natureza do abismo

Neste ano de 2022, a Proteção Animal Mundial vem monitorando a vida selvagem impactada pelo fogo florestal impulsionado pela demanda humana global por proteína animal no norte e centro do estado de Mato Grosso, no Centro-Oeste do Brasil. Além do monitoramento da fauna, a ação busca identificar riscos causados pela agricultura industrial intensiva e apoiar parceiros locais para o desenvolvimento de resgate, recuperação e reintrodução de animais à natureza.

Em contexto semelhante – de pressão humana sobre a natureza sob a forma de desmatamento e queimadas – como em 2019, no Acre, e em 2020/2021, no Mato Grosso do Sul, a intervenção realizada desta vez pela Proteção Animal Mundial tem como objetivo destacar os danos à vida selvagem e aos ecossistemas causados por uma indústria global de carne que é agora cinco vezes o tamanho que era há 50 anos e mais baseada em cruéis fazendas de criação intensiva de animais.

A região em foco é importante porque, além dos biomas Amazônia e Cerrado, abriga também uma rica zona de transição entre eles, o que soma a biodiversidade de ambos. O ecótono Cerrado-Amazônia está localizado dentro do Arco de Desmatamento da Amazônia e já perdeu cerca de 60% de sua cobertura florestal original. A maior concentração de florestas secas do país é encontrada lá. Também abriga várias espécies endêmicas.

Visitas de campo foram realizadas em parceria com o Grupo de Resgate de Animais em Desastres (Grad), para assessoria técnica em áreas de fogo ativo ou recente. Localmente, o Instituto Ecótono apoia o atendimento de emergência imediato adequado e o atendimento a longo prazo para vítimas específicas, inclusive por meio de outros parceiros, quando disponíveis.

Em eventos de fogo nas áreas monitoradas, em geral relativamente próximas de ocupações e atividades humanas, a vida selvagem já perdeu a diversidade e tornou-se escassa a ponto de se tornar difícil de detectar. Mesmo em lugares onde houve incêndios bastante recentes e que foram acessados pela Proteção Animal Mundial, quase não se verifica impacto direto (queimaduras ou carbonização) em aves ou mamíferos, por exemplo. O sofrimento aparece mais tarde, materializado em animais isolados em pequenos trechos de floresta, desorientados, intoxicados, separados de seus rebanhos, famintos, desidratados, atropelados nas estradas ou feridos após se aproximarem perigosamente de ocupações humanas.

Sob atenção do Instituto Ecótono e com suporte direto da Proteção Animal Mundial, atualmente há diversos animais resgatados nessas condições, como os casos de um filhote de cateto e um filhote de veado. Espécies de macacos também são vítima recorrentes, incluindo indivíduos que chegam após vários traumas, como fraturas, em condições gerais de saúde precárias.

Comprovando como os impactos afetam indistintamente da base ao topo da cadeia, os felinos também são animais muitas vezes resgatados e tratados. Fugindo de incêndios, com pouca comida ou passando sede, esses animais destemidos acabam se aproximando dos humanos. Em um dos episódios mais recentes, uma onça-pintada de menos de seis meses foi encontrada solitária e bastante fraca em propriedade privada. Membro de uma espécie classificada como Quase Ameaçada pela União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em Inglês), o animal ainda está em tratamento para reabilitação e posterior libertação.

O sofrimento da vida selvagem está aumentando com os impactos diretos e indiretos da atividade agrícola, do uso do fogo e da presença humana.  Mesmo áreas desmatadas que antes eram utilizadas principalmente para a pecuária extensiva estão sendo cada vez mais convertidas em plantações de grãos, como soja e milho, para serem utilizadas como ração animal.

Os animais dentro dos sistemas pecuários intensivos são condenados a uma vida de sofrimento por uma indústria na contramão do bem-estar animal. É uma indústria impressionante, dominada por um punhado de corporações globais – como JBS, BRF e Cargill – que concentram a maior parte dos lucros gerados. A JBS, por exemplo, processa globalmente quase 14 milhões de frangos, 128 mil suínos e 77 mil bovinos por dia.

“Em campo é possível perceber claramente a forma como a atividade de plantio de soja e outras culturas se consolida, causando uma redução do habitat e do número de animais silvestres presentes no Mato Grosso. Mesmo com as imposições legais de manutenção de áreas de Reserva Legal dentro de propriedades privadas, o que se vê com frequência absurda são vastíssimas extensões de terra destinadas à produção agropecuária com apenas pequenas manchas isoladas de vegetação, sem conexão entre elas, causando problemas de bem-estar e colocando algumas espécies animais já ameaçadas sob riscos ainda maiores”, diz o consultor global de Bem-Estar da Proteção Animal Mundial, Roberto Vieto.

“Impressiona muito a quantidade e a pulverização de focos de fogo pelo território do Mato Grosso. É algo generalizado em todo o estado e que reforça a interpretação de movimento deliberado e organizado. Mesmo quando as chamas não estão visíveis, a presença da fumaça, às vezes muito densa, é constante nessa época de seca e incêndios. O cheiro de queimado e a fumaça são percebidos mesmo dentro das zonas urbanas e cobrem grandes áreas. Fizemos deslocamentos em que que constatamos isso por centenas de quilômetros, atravessando grossas nuvens de fumaça nas estradas.”

De acordo com Vieto, mesmo que os animais não sofram queimaduras fatais, acabam com a respiração e a visão afetadas e sofrem outros tipos de incidentes. Além disso, a falta de infraestrutura pública, em quantidade e qualidade adequadas para atender os indivíduos vitimados é muito preocupante.

“As empresas globais de processamento de carne controlam toda a cadeia produtiva. Eles exercem uma pressão inimaginável sobre o ambiente natural, sobre a vida e as percepções das pessoas. E apesar de tudo isso, eles continuam se recusando a assumir responsabilidades concretas diante de problemas cada vez mais evidentes”, avalia a head de Campanhas de Animais de Fazenda da Proteção Animal Mundial, Jacqueline Mills,

“Ao compreender essa cadeia de eventos, é fácil ver por que o consumo de carne bovina, frango ou suína criada a milhares de quilômetros da Amazônia e do Cerrado, nos Estados Unidos, Ásia ou Europa, mas alimentado com soja e milho ‘manchados’ produzidos nessas áreas é tão eticamente repreensível quanto o consumo de produtos de animais inteiramente criados nessas terras desmatadas e queimadas no Brasil.”

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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