Devemos mudar nossa relação com outras espécies se quisermos evitar pandemias

As doenças zoonóticas com potencial pandêmico que o mundo vem enfrentando estão cada vez mais associadas ao impacto que causamos na vida silvestre, assim como à criação de animais para consumo (Fotos: Greenpeace/Tras Los Muros/EPA)

Seguir todos os protocolos de higienização e segurança para evitar contrair a covid-19 e evitar também favorecer um cenário que possa contaminar os outros é algo essencial, mas é uma pena que ainda hoje a percepção sobre a importância de uma ponderação em relação ao tema pouco vai além disso para muitas pessoas.

Tenho a impressão de que a maioria ainda desconhece como surgem pandemias associadas às doenças zoonóticas – consequências cada vez mais comuns de nossa intervenção na vida de outras espécies. Mas isso não tem recebido muita atenção. Não houve grande mudança nesse sentido em nenhum momento desde que a doença passou a ser vista como séria em inúmeros países a partir de março de 2020.

A crença superficial e limitada de que o mundo enfrenta “apenas uma doença da China”, mesmo nos aproximando de quase um ano recebendo informações sobre a covid-19 e outras doenças zoonóticas com potencial pandêmico, faz as pessoas subestimarem o desenvolvimento de graves patógenos, crentes de que o surgimento e proliferação de uma doença pandêmica é apenas responsabilidade do outro, “que está lá longe”. É como se ninguém mais estivesse “semeando” novas doenças zoonóticas.

Desmatamento no Brasil é um fator preocupante 

Desmatamento, algo em que o Brasil é campeão, expulsa espécies silvestres de espaços naturais e os empurra para perto da população humana na luta pela sobrevivência. Ou então obriga espécies silvestres a entrarem em contato com outras espécies silvestres, domésticas ou domesticadas com quem jamais teriam contato em condições naturais.

Ninguém pode dizer que esses cenários não são facilitadores de surgimento e proliferação de doenças zoonóticas. Pense também no absurdo de expulsar animais de seus habitats para dar lugar a espécies que não são originárias desses ambientes e que serão criadas e mortas para consumo.

Há também as consequências decorrentes do confinamento de animais, associadas a condições insalubres ou desenvolvimento de estresse, ansiedade e anomalias comportamentais e físicas que surgem em estado constante de privação. Isso também favorece o surgimento e/ou ampliação da disseminação de inúmeras doenças – que exterminam “somente” animais não humanos ou que são zoonóticas.

Não há dúvida de que precisamos mudar

Sei que muitos não pesam os fatores de origem pandêmica ou de potencial pandêmico em consequência de uma falta de instrução ou de informação, e muitas autoridades também evitam discutir esse assunto para não entrarem em conflito com seus próprios interesses de viés prioritariamente econômico, mas outros ignoram essa realidade apenas por considerá-la irrelevante. É mais fácil manter-se na superfície.

Dias atrás, vi uma entrevista do escritor David Quammen, autor do livro “Contágio”, dizendo que nunca nos livraremos desse vírus. Isso é preocupante, mas se não mudarmos, e quando digo isso penso em uma grande mudança de hábitos, e em nossa relação com a natureza e com outras espécies, o temor maior é que venham outras pandemias ainda mais letais.

Percebo também como o mundo exige uma maior convergência positiva humana quando pessoas com mais de 90 anos dizem que nunca imaginariam passar por algo assim, e alguém com essa idade viveu o suficiente para apontar como as coisas estão cada vez mais distantes do suposto controle que a humanidade julga estar sempre ao seu alcance. Mas não vejo isso como uma falta de capacidade, mas de interesse na mudança que o mundo necessita.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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