“Diamante Negro”, um livro que expôs a crueldade na exploração de cavalos

Obra em que Anna Sewell “dá voz” a um cavalo foi publicada em 1877

Embora seja um romance, quando foi lançado em 1877, “Black Beauty”, publicado no Brasil como “Diamante Negro”, foi recebido como um retrato sobre a crueldade na exploração de cavalos. A autora inglesa Anna Sewell realmente teve essa intenção ao “dar voz” a um cavalo e contar a sua história como se fosse uma autobiografia – as crueldades que testemunhou e viveu.

“Black Beauty”, ou “Diamante Negro” no Brasil, é o primeiro nome que o protagonista recebe na fase de sua vida em que, ainda bem jovem, é mais valorizado. No entanto, ainda potrinho é obrigado a aprender que um cavalo normalmente é criado para servir, ser domado. Todas as observações feitas por ele são do quanto a doma vem acompanhada de uma forma antinatural de viver:

“Domar é ensinar um cavalo a trazer sela sobre o lombo, a suportar um freio na boca e a carregar sobre tal sela um homem, uma mulher ou uma criança, que devem ser obedecidos docilmente. É tudo isso. O cavalo tem ainda de aprender a suportar uma coalheira, um rabicho, uma retranca e a ficar muito quieto enquanto o estão arreando; deve, depois, deixar-se atrelar aos varais de uma carroça, […] conforme a vontade do homem que segura as rédeas. O pior de tudo é que, quando o cavalo está arreado, tem de desistir de movimentos espontâneos […]” (2021, p. 15).

Ainda muito jovem, Diamante Negro já se queixa do freio: “Quem nunca o usou não pode imaginar que incômodo é. Um pedaço de ferro duríssimo, metido à força na boca, atravessado entre os dentes, sobre a língua; esse ferro é mantido por uma barbeia e várias correias, de modo que, por mais que faça, o animal não pode, por si mesmo, livrar-se do horror. Como é desagradável!”

Se a antropomorfização é usada por Anna Sewell para estabelecer uma interação com os humanos pela voz que ela atribui ao protagonista e aos outros equinos, isso ocorre somente entre esses animais e com o leitor, porque, reproduzindo a realidade, na história a ausência de uma linguagem em comum é também o que se usa para favorecer a dissimulação da crueldade na exploração; mesmo que não seja necessária para reconhecer o que existe de errado e de arbitrário nessa relação.

Depois Diamante Negro se queixa de um freio com tapa-olhos que limita sua visão. Outros cavalos também se queixam depois da limitante e desconfortável viseira. “Nunca senti tanta vontade de aplicar uma boa parelha de coices como quando me aplicaram esse rabicho” (2021, p. 16). Seu lamento também envolve a impossibilidade de ter família ou viver em família como os humanos. “Logo são passados adiante e separados dos pais” (2021, p. 25).

Um exemplo da implicação dessa exploração em que o animal deve viver numa espécie de desconexão e insciência em relação aos seus é que só bem mais tarde ele fica sabendo que o cavalo que morreu durante uma atividade de caça, e de quem ele testemunhou a morte, mas com quem não pôde conviver, era seu irmão.

A história é construída em torno das etapas da vida de um cavalo. A princípio, ele imagina que sua vida será boa, até que começa a compreender que a exploração se intensifica conforme a idade do animal e muda conforme seus condicionamentos, imposições, usos e valor.

“A liberdade apenas, aquela mesma liberdade na qual vivi durante três anos e meio; agora vivia preso e sem esperança de nunca mais gozar a liberdade de outrora. […] Mas não deixa de ser penoso para um animal jovem, como sou, e que poderia andar livre nos pastos, a galopar com os outros sempre que desse gana, estar o dia inteiro, o ano inteiro, a vida inteira neste constrangimento de encarcerado” (2021. P. 27).

Ao conversar com outros equinos, como a égua Wasp, ele fica sabendo que ela foi desmamada e separada da mãe. Diamante Negro então passa a perceber o quanto isso é comum. Ainda sobre Wasp, o relato de seu amansamento também justifica seu comportamento, por vezes, arredio em relação aos humanos:

“Agarraram-me pela crina, pelas ventas, pelo beiço inferior, me meteram à força o cabresto e o bridão, me puxaram com violência pelo cabresto e me deram pancadas e chicotadas. Foi a minha primeira experiência de brutalidade dos homens” (2021 p. 30).

Assim como Diamante Negro, ela também, e muito antes, conheceu o confinamento. Mas conheceu também a crueldade que veio com sua resistência ao controle humano:

“Eu […] não suportava passar dias e dias presa numa baia, privada dos meus galopes livres pelo campo. A intenção deles parecia ser quebrarem-me o espírito para sempre, destruírem-me. Percebi imediatamente que sua intenção era destruir em mim o brio da raça e transformar-me numa simples coisa obediente […] Se eu não fazia exatamente o que ele tinha na ideia, irritava-se e me fazia correr à rédea solta em redor do picadeiro até quase me matar de exaustão. […] Cortou-me de chicote, não suportei aquilo. Rompi em coices e corcovos com uma fúria que me espantei a mim mesma. Uma verdadeira luta. Por bastante tempo aguentou-se ele na sela, sempre a castigar-me cruelmente com o chicote e as esporas” (2021, p. 30-31).

“Diamante Negro” é repleto de relatos descritivos da crueldade a que são submetidos os cavalos. No romance, os cavalos, na voz de Wasp, também se queixam dos bridões, que ferem a língua e os cantos da boca, chegando a fazer espumejar sangue.

Além da minha boca sempre ferida e da dor no pescoço, sentia-me mal lá por dentro, talvez na traqueia, e, se continuasse mais uns meses em tal vida, certamente que levaria a breca. Resisti. Dei, então, de morder e escoicear e pinotear sempre que me vinham pôr os arreios. Em consequência, recebia pancadas e mais pancadas” (2021, p. 35).

As reclamações equinas na história também envolvem o tratamento que recebem como se fossem máquinas. “Não imaginam que somos de carne e nos cansamos, e temos uma sensibilidade”, lamenta o cavalo Flying (2021, p. 39) ao relatar um episódio em que foi usado como montaria por alguns jovens que não se importavam com os interesses que não fossem os deles.

Muito do que é narrado no romance ainda é parte da realidade; como o exemplo do rapaz que tenta obrigar um potro a saltar uma cerca alta, mais alta do que o animal já pulou. Ele ignora o temor do cavalo e o agride com força usando esporas e chicote. “Depois apeou e, agarrando-o pelo freio, deu-lhe valentemente na cabeça com o cabo do chicote. Montou de novo e insistiu no salto, cravando-lhe as esporas nas ilhargas” (2021, p. 55). Ou o exemplo de uma carroça encontrada excessivamente pesada e atolada:

“O carroceiro […] berrava e espancava impiedosamente os pobres animais. Era uma cena dolorosa. Estavam ali duas desgraçadas criaturas de carne e osso lutando furiosamente para arrancar o veículo, mas inutilmente. Ofegantes, como o suor a porejar do corpo inteiro, músculos retesos como cordas de violino. E o carroceiro a malhar e a insultá-los dos piores nomes (2021, p. 81).

Parte das violências impostas aos cavalos e que são criticadas na obra também vem do capricho dos proprietários – como no uso das falsas-rédeas utilizadas para fazer com que o cavalo mantenha o tempo todo a cabeça bem erguida, gerando uma série de problemas de saúde.

“Eu recebi um novo companheiro […], de nome Max, que aceitava com muita paciência a falsa-rédea. Perguntei-lhe como suportava aquilo. – Suporto-a porque não há remédio, mas sinto que me está encurtando a vida; o mesmo sucederá a você, se continuar por muito tempo forçado a essa tortura” (2021, p. 93).

Mais tarde, Diamante Negro testemunha uma carroça conduzindo um cadáver de cavalo. Nesse momento, um animal transporta o animal de quem provavelmente ocupará o lugar no futuro. “A cabeça pendia para fora; da boca, de língua à mostra, escorria sangue em gotas. Que quadro doloroso, um velho cavalo que rebenta e vai para o monturo! Wasp? Que bom que sim. Seria para a minha boa companheira o descanso eterno”, (2021, p. 160-161). Nessa observação do protagonista há o reconhecimento de que a vida é tão cruel para quem vive tal realidade miserável que é preferível a morte.

Quando o protagonista testemunha outro animal exausto, suando em bicas, e com as pernas tremendo, ele lamenta mais uma vez sem perceber que ele próprio é sujeito dessa realidade. Exemplo disso é que mais adiante, Diamante Negro observa que três anos nesse trabalho o fizeram envelhecer. “Eu já não era o cavalo que fora”.

Podemos reconhecer a partir do romance que mesmo pequenas transformações estéticas em um animal tornam-no descartável para determinadas atividades, relegando-o a usos que aceleram ainda mais seu envelhecimento e sua morte. Lesões, que fazem com que um cavalo não seja visto com os mesmos olhos para determinadas práticas, também o empurram para uma realidade para a qual não foi criado. Assim se a realidade do animal piora no decorrer da vida, isso se dá pela relação que os humanos têm com ele.

Quando Diamante Negro já não é mais jovem e está sendo espancado por um carroceiro em uma ladeira, uma mulher, na última parte do romance, intervém: “Que direito temos nós de torturar as pobres criaturas de Deus? E com que proveito? Os cavalos não falam; nem por isso sentem menos e sofrem menos que os animais que falam, que somos nós.”

É notório que essa mulher, de quem não sabemos o nome na história, personifica a posição da própria autora Anna Sewell, assim como justifica sua intenção com o romance, ao dar voz aos cavalos não apenas para contar uma história, mas também para promover uma conscientização que leve a uma mudança.

Por outro lado, também não se pode dizer que o livro seja sobre a defesa da abolição do uso de cavalos; porém, embora reformista, oferece argumentos para refletir sobre a importância dessa abolição.

O que o romance expõe em diversas situações é que conforme a exploração mina a vitalidade de um cavalo, com o tempo, o cavalo passa a ter “usos menos nobres”, e antes do fim da vida estará sendo usado para atividades ainda mais extenuantes, até que, sem forças, morre ou é enviado para o matadouro – sem possibilidade de aposentadoria.

Podemos perceber também na história que em nenhum momento os proprietários, bem ou mal intencionados, cogitaram não vender ou livrar-se de um cavalo quando já o consideravam incompatível com seus objetivos ou estilo de vida. Mesmo os homens que “melhor trataram” Diamante Negro no romance, não deixaram de vendê-lo, assim sendo omissos sobre a crueldade que atingiria o protagonista.

Seria um engano dizer que esse tipo de consciência exploratória não persiste na atualidade, que hoje os cavalos têm vidas maravilhosas. Basta levarmos em conta que a própria exploração dos cavalos os deixa em desvantagem, já que os interesses humanos sempre são colocados acima dos interesses desses animais. Ademais, cavalos ainda podem ser utilizados para diversas finalidades, e mesmo extenuantes, e também podem ter seus corpos reduzidos a pedaços no matadouro e exportados.

“Meu cocheiro era tão cruel quanto o patrão. Usava um chicote de nó na ponta. Os golpes eram dos mais dolorosos, não raro cortando-nos o couro a ponto de verter sangue. Dava-me com golpes pelo corpo inteiro, sobretudo no ventre, que é uma parte muito sensível” (2021. p. 187).

Referência

SEWELL, A. Diamante Negro. 1. ed. São Paulo: Lafonte, 2021. 200 p.

Leia também “Cavalos devem morrer quando não dão lucro?“, “Por que montar em cavalos?“, “Quando Nietzsche reagiu à violência contra um cavalo” e “MG e PR reelegem deputados que apoiam abate de cavalos, mulas e jumentos“.

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

2 respostas

  1. É absurdo em plena época de inteligência artificial..redes neurais… robôs etc… Tem seres humanos ditos “civilizados” que ainda se comportam pior que “homens das cavernas” como a exploração dos animais… Distorcendo conforme suas conveniências o contexto de “domínio”. Exercendo assim, suas selvagerias, recalques, maquiavelismo e barbáries em seres justamente que precisam ser protegidos e ter compaixão… Deus tenha misericórdia também aos animais contra a crueldade humana…

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