O romance “Michael Kohlhaas”, do escritor alemão Heinrich von Kleist, é uma obra interessante para analisar uma percepção sobre os animais que persiste até os tempos atuais.
Na história, Michael Kohlhaas é forçado a deixar alguns de seus cavalos no castelo do fidalgo Wenzel von Tronka para que Kohlhaas possa ter o direito de atravessar a estrada em frente à propriedade do fidalgo.
Para isso, criam uma história falsa de que ele necessita de um salvo-conduto. Não o tendo, ele concorda em deixar alguns cavalos como garantia de que a situação será resolvida, podendo pegá-los ao retornar.
Mas quando Kohlhaas retorna, ele descobre que, além de seu servo que foi deixado para cuidar dos cavalos ter sido espancado e expulso da propriedade, os animais antes “reluzentes e bem alimentados” estão reduzidos a “um par de pangarés magros e consumidos”.
“Ossos nos quais se poderia pendurar objetos como se fossem ganchos; crinas e rabos desgrenhados, sem manutenção nem cuidados; o verdadeiro quadro da miséria no reino animal!”
Dos cavalos, Kohlhaas recebe um relincho acompanhado de um débil movimento. O criado do castelo nega que os animais foram maltratados. Além de desnutridos, os animais foram usados no trabalho no campo, algo a que antes nunca foram submetidos e que reduz a expectativa de vida dos animais.
O episódio marca o início da revolta de Kohlhaas contra o fidalgo, que, valendo-se de seus privilégios na hierarquia social, decide que não há nenhuma reparação a ser feita. O que chama atenção também é que, se o fidalgo e os que trabalham para ele foram cruéis com os animais, a atitude de Kohlhaas externa sua contradição na oposição aos maus-tratos na seguinte passagem:
“Kohlhaas disse que preferia chamar o açougueiro, e ordenar que os cavalos fossem jogados ao esfoladouro, a levá-los como estavam de volta a seu estábulo em Kohlhaasenbrück. Deixou os rocins parados no lugar em que estavam sem se preocupar com eles, e montou seu baio, garantindo que saberia providenciar por justiça, saindo a galope em seguida.”
A justiça então não é para os cavalos, e sim para quem os têm como negócio e que foi prejudicado por não poder hipoteticamente naquele momento obter a partir deles o lucro que obteria vendendo-os a bom preço. Se prezasse pelos animais, Kohlhaas não os teria deixado na propriedade excluindo-os do que ele chama de “providenciar justiça”.
Assim ele toma para si que quem foi lesado foi ele, não os cavalos. Do contrário, teria os levado consigo e cuidado deles, exigindo depois uma reparação. Esse é um exemplo que exclui animais não humanos da consideração por justiça. Afinal, como deixar animais naquele estado exatamente nas mãos de quem causou-lhes tanto mal?
Kohlhaas assim é sujeito de grande contradição, porque usa o estado dos animais para exigir justiça, mas não se importa com os animais mais do que com seus interesses em relação à mercadorização deles. Esse ponto é influenciado pela histórica classificação dos animais como propriedades.
Kleist traz por meio do narrador uma observação em que reprova a atitude de Kohlhaas que cega-se para a consideração imediata do que é mais importante para os animais e não para ele: “Deixou os rocins parados no lugar em que estavam sem se preocupar com eles…”
A afirmação de Kohlhaas de que seria preferível enviá-los para o matadouro condiz também com o nosso próprio tempo porque, mesmo hoje, isso continua ocorrendo. Embora haja uma relativa defesa contra maus-tratos aos cavalos, mesmo no Brasil é permitido enviá-los para o matadouro quando o proprietário deseja descartá-los.
Se o consumo de carne de cavalo não é tradicional no Brasil, isso não impede que seja exportada. Nisso, estamos diante de um paradoxo em que causar alguns males a um animal é reprovável, mas matá-lo não é, se isso ocorrer em ambiente institucionalizado e com fim de lucro ou algum tipo de compensação pelo que já não poderá obter dele em vida.
As contradições nas ações de Kohlhaas são perceptíveis em várias passagens:
“Kohlhaas praguejou contra essa violência vergonhosa e aliás premeditada […].” Se ele reconhece a violência, o que impediria que a violência se intensificasse ao deixar os cavalos no castelo do fidalgo von Tronka?
Há um momento em que, segundo o narrador, ele “fazia menção de apenas deixar aquele ninho de abutres com os cavalos”. No entanto, muda de ideia em um confronto com o alcaide de von Tronka.
Logo se Kohlhaas vê como parte de sua justiça abandonar os cavalos para buscar uma reparação que envolve esses cavalos, o que o influencia a deixá-los ali é uma combinação de orgulho e de especismo que faz com que não aceite levar os cavalos que não em bom estado; ainda que perceba que não há nenhum sinal na propriedade de que abandonar tais animais seja uma boa ideia, já que sofreram muito naquele lugar.
Todo o romance se desenrola em torno desse episódio em que a justiça, na realidade, é para o homem, não para os animais. Exemplo que motiva outra reflexão é a seguinte passagem: “Estes não são os cavalos que valiam 30 florins de ouro! Eu quero os meus cavalos bem alimentados e saudáveis de volta!” Estar saudável e bem alimentado então é condicionado ao valor de mercado.
Isso também leva-nos a pensar na passagem em que Herse, o servo de Kohlhaas, diz, ao detalhar tudo que ocorreu na propriedade antes de seu espancamento e expulsão:
“Eu não quis que os cavalos fossem aniquilados nos trabalhos do campo […]” Podemos compreender que seria crueldade, mas podemos dizer que a preocupação é com a crueldade ou com o valor de mercado que poderia ser reduzido em decorrência disso, se consideramos tudo que foi apresentado e proposto como reflexão até agora?
Kohlhaas personifica contradições que são muito comuns ainda hoje na relação dos seres humanos com outros animais – contradições que centram-se na desigualdade que existe envolvendo o lugar de uso desses animais e a crença de que pode haver grande justiça na instrumentalização e na mercadorização deles.
Embora “Michael Kohlhaas” seja um livro sobre o que um homem (pequeno proprietário) é capaz de fazer por justiça e pela reparação de abusos, no confronto com o poder, mesmo na forma do Estado, e também como consequência da relativização do pacto social (ao servir prioritariamente aos interesses dos que estão no topo da hierarquia social), a obra mostra que se isso não contempla outros animais é pelo lugar em que eles são mantidos no contexto de diferentes estratos sociais.
Mesmo quem combate a injustiça e a permissividade possibilitada pelos privilégios do poder, não deixa de reproduzir formas de poder e contribuir para que sejam perpetuadas – como na relação de instrumentalização ou mercadorização, que também é opressão, entre humanos e não humanos. Ademais, interesses humanos são tratados como não humanos, como ocorre no romance, assim subvertendo a lógica de quem é mais prejudicado, e porque evoca a realidade comum.
Há uma passagem do livro em que, além de externar sua descrença no poder judiciário (ele próprio escreve uma sentença), fica ainda mais claro que Kohlhaas não se preocupa em cuidar de seus animais emaciados. Por seu orgulho, ele exige que recebam cuidados das mãos do próprio fidalgo von Tronka:
“Sentou-se e redigiu uma sentença judiciária, na qual condenava, por força do poder que lhe era concedido, o fidalgo Wenzel von Tronka a lhe trazer até Kohlhaasenbrück, em um prazo de três dias, os cavalos que lhe usurpara e depois aniquilara nos trabalhos do campo, alimentando-os pessoalmente já em seus estábulos até que voltassem a estar gordos como eram antes.”
Kohlhaas também manda trançar um chicote com dez nós para mostrar ao fidalgo “o que é bom”, caso ele “se mostrasse preguiçoso no cumprimento da sentença nos estábulos de Kohlhaasenbrück. Nesse ponto, o herói quer que o fidalgo sinta-se como um animal maltratado.
Podemos citar também que quando Kohlhaas invade o castelo de von Tronka, depois desencadeando um incêndio, ele determina que seus cavalos desnutridos sejam priorizados no resgate em relação a outros cavalos. Embora seja previsível, já que é comum qualquer humano priorizar primeiro “os seus”, se o incêndio ocorre em decorrência da ação de Kohlhaas, outros animais, que são desconhecidos para ele, devem morrer como parte da busca por justiça? Afinal, é legítimo prejudicar animais em benefício de outros animais?
Em uma carta que Kohlhaas troca com Martinho Lutero, o líder religioso também faz uma observação que teria sido mais benéfica para os cavalos, quando sugere que ele deveria ter tomado à mão os cavalos, magros e desgastados e os levado para o seu estábulo, onde poderia alimentá-los até que voltassem a se tornar gordos. Embora Lutero também recomende que ele perdoe o fidalgo, ele poderia não perdoá-lo, e ainda assim levar os cavá-los para casa, preparando então um plano para reivindicar justiça.
Ao buscar por justiça enquanto os cavalos desnutridos são levados de um lado para o outro, e sem que o próprio Kohlhaas cuide deles, imaginamos um cenário desalentador:
“O esfolador de Dobbeln, cujo negócio já fora concluído, e que não queria permanecer por mais tempo ali, atou, quando o povo começou a se dispersar, os cavalos em um poste de iluminação, onde eles ficaram expostos o dia inteiro, sem que alguém se preocupasse com os mesmos, à zombaria dos arruaceiros e punguistas; de modo que, na falta de todo e qualquer cuidado e tratamento, a polícia teve de tomar conta deles, e, à chegada da noite, chamou o esfolador de Dresden para que, até nova ordem, os encaminhasse ao açougue nos arredores da cidade.”
Mais tarde, enquanto Kohlhaas espera que a saúde dos cavalos seja restabelecida pelo fidalgo, a situação piora:
“Era bastante improvável que os cavalos, dos quais o esfolador de Dresden agora cuidava, voltassem algum dia à condição que tiveram no estábulo de Kohlhaasenbruck. […] Nada parecia mais adequado do que encaminhar uma indenização em dinheiro pelos cavalos.” Nesse caso, Kohlhaas poderia ser beneficiado. Mas e os animais que poderiam ter recebido tratamento logo após a constatação do mal humano que os atingiu?
Apesar disso, contrariando todas as probabilidades, a saúde dos cavalos ao final da história é restabelecida (não sem uma série de graves implicações determinadas por quem está acima do fidalgo von Tronka, o que também não ocorreria sem grande repercussão pública). Além disso, a reivindicação por justiça de Kohlhaas, considerando também a destruição causada por ele nessa busca, também é usada contra ele, já que ele obtém sua justiça, mas é maiormente penalizado por ela.
Kleist cria uma história de justiça e abusos de poder (a burocracia também é usada a favor dos cidadãos mais privilegiados) a partir de um episódio de crueldade contra cavalos e em que os interesses dos cavalos são deixados em segundo plano pelo herói da história, que centra-se, embora haja legitimidade em seu desejo por reparação, no ser humano. Ele volta-se primeiro ao interesse humano (como se ele fosse mais lesado que os cavalos, justificando deixá-los); ou um bem animal tratado na prática como bem humano, já que não se pode obter benefícios de um animal enfermo. Basta pensarmos na afirmação do herói de que “os cavalos já não valeriam mais 30 florins de ouro”, não naquele estado.
A inconsideração do que é mais importante aos animais submetidos aos interesses humanos é ainda mais grave em nosso tempo, se considerarmos que no século 19 o uso de animais, se era elevado, não era tão elevado quanto hoje. Claro, há mais leis e medidas contra maus-tratos e crueldade animal, assim como práticas que hoje são amplamente consideradas inaceitáveis. Por outro lado, humanos não estão explorando mais animais do que nunca?
Saiba Mais
No Brasil, não há lei que proíbe o abate de cavalos.
Leia também “Por que montar em cavalos?“, “Quando Nietzsche reagiu à violência contra um cavalo” e “MG e PR reelegem deputados que apoiam abate de cavalos, mulas e jumentos“.
Uma resposta
É tudo revoltante…Tem.seres humanos que é o próprio Leviatã…. Nada justifica a crueldade, selvageria e barbáries do ser humano aos animais….A não ser a própria covardia de querer impor suas maldades, recalques, etc..e a imensa falta de Deus no coração…( Que Deus abençoe os de bom coração que tem.zelo e compaixão também pela vida dos animais…Mas, aos algozes cruéis que tenham os boomerang até se regenerarem…..