É correto falar em “sacrifício de animais”?

Hoje pode haver muitas pessoas, consoante contexto, que não associam sacrifício ao seu significado original ou objetivo, o que surge com o recrudescimento opositor. Mas mesmo interpretado de outra forma, isso não invalida seu sentido etimológico, ainda que possamos atribuir-lhe polissemia (Foto: Michael Thirnbeck)

“Sacrifício” é um termo controverso. Vejo uma inadequação quando falamos de animais, porque sacrifício é associado, partindo de sua construção e desenvolvimento histórico, à ideia de “fazer um mal por um bem”.

Por exemplo, tira-se a vida de um animal em busca de um “chamado bem”, assim definido por quem o pratica ou defende – que vem de seu sentido original. Tenha um viés religioso ou não, se discordamos de sua realização, ao usar o termo sacrifício, o reconhecemos como sacrifício, e sendo sacrifício palavra que representa “um mal que leva a um bem”, não surge então um dilema em relação ao uso?

Na Grécia Antiga, o sacrifício de animais passou a ser condenado pelos pitagóricos, influenciados por povos pacíficos de um mundo não grego, também referenciado como “não ocidental”, que defendiam que se homenageamos deuses, devemos fazê-lo evocando a vida, não a morte, que é implicação do chamado “sacrifício”.

O que associa-se também à reflexão: Que responsabilidade podemos atribuir a alguém que não somos (animais vitimados) em relação ao que somos? Não seria uma transferência involuntária de atribuições? Se vitimamos quem não reconhece nem compartilha essas crenças nem a valoração da prática.

Como reflexo disso, e também da metempsicose, ervas e outras plantas cheirosas eram levadas aos altares, em contraposição ao cheiro ferroso e desagradável do derramamento de sangue – reconhecido como “não incitador de bons sentimentos”.

Hoje pode haver muitas pessoas, consoante contexto, que não associam sacrifício ao seu significado original ou objetivo, o que surge com o recrudescimento opositor. Mas mesmo interpretado de outra forma, isso não invalida seu sentido etimológico, ainda que possamos atribuir-lhe polissemia.

Outra prática citável como “sacrifício”, fora de um contexto dogmático ou ritualístico, e a partir da institucionalização, é o “abate sanitário” de animais, que ocorre não apenas com animais enfermos como também saudáveis – quando há desconhecimento ou dúvidas sobre procedência. O chamado “sacrifício” também ocorre quando há crises no setor agropecuário, e animais podem ser descartados como produtos que serão mortos para contenção de despesas. Podemos pensar também em outros exemplos.

Nesses casos também surge um dilema, porque o “abate sanitário” e o “sacrifício” equivalem-se na “aplicabilidade comum”, por “similitudes práticas”. O primeiro porque associa-se à ideia de inevitabilidade, ainda que não o seja, sob a prerrogativa de evitar “a contaminação de outros animais”, mesmo que não haja confirmação de que o “sacrificado” estivesse contaminado.

Mas a preponderância, independente do estado da vítima, é da intencionalidade, que é colocada acima da realidade, porque a ideia de “abate sanitário” também traz um conjunto de crenças voltado à irremediação e à salvação, ainda que todos esses animais tenham como destino, antecedente ou subsequente, uma lâmina na garganta, e sejam apontados como disseminadores (sobre isso, devemos ignorar que a causa é o próprio sistema ao qual é submetido? Afinal, a doença que o animal contrai é favorecida pela sua própria existência ou pelo contexto em que está inserido e pela finalidade para a qual é criado?) ou sobreviventes.

Realmente, o termo “sacrifício” pode soar mais impactante se comparamos com “abate sanitário”, que evoca ideia associável por finalidade com “preservação”, já que tudo que é “sanitário” nos permite uma ideia de “limpeza”, “salubridade” ou ação de restabelecimento.

Ignorando esses romantismos, nem por isso a palavra “sacrifício” liberta-se de seu sentido original, que é, independentemente de como é feito ou por qual motivação, “praticar um mal (julgado necessário) que leva a um bem”.

Por isso, “sacrifício” ganhou dubiedade, e o termo pode ser mais validado por um lado do que por outro. Acredito que a realidade pode ser simplificada pelo reconhecimento de que o termo “sacrifício” é controverso e, independente da finalidade do uso, refere-se a práticas em que quem “desse mal não recebe um bem” é a própria vítima.

Em alguns contextos há pessoas que também referem-se à grande matança de animais para consumo como práticas sacrificiais, visando combater a crítica a determinadas práticas mais comumente reconhecidas como sacrificiais, mas se entendemos dessa forma, não estamos dizendo que isso então é um sacrifício? E voltamos ao uso de uma palavra que, em seu sentido original, representa “um mal por um bem”.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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