No romance “Os Grandes Carnívoros”, Adriana Lisboa nos apresenta Adelaide, uma ativista brasileira pela libertação animal que cumpriu pena nos EUA por participar do incêndio a um laboratório que realizaria experimentos cruéis com animais. “Aquele incêndio longamente planejado no laboratório novo em folha que ainda nem tinha começado a operar, mas onde eles já sabiam o que ia acontecer, porque era o que acontecia em incontáveis outros” (2024, p. 41).
Na obra há uma provocação aos leitores ao levantar um questionamento sobre haver um crime na ação do grupo do qual Adelaide fazia parte e, por outro lado, a garantia legal da crueldade animal. Mesmo que a destruição provocada seja reprovada, é moralmente certo o que ocorre lá dentro? É uma reflexão logo gerada pelo romance.
Adelaide, após ganhar a liberdade e retornar ao Brasil, reflete sobre um dos autores que ela estudou, Gene Sharp, e o que ele define como violência. “Sabotagem não é violência, sublinhava. Naquele espectro, o dos movimentos de resistência, que vai dos atos não violentos aos atos de violência, a sabotagem não está em nenhum dos dois extremos. Mas está mais perto da violência. Era o que Sharp dizia. Mais perto da violência. E quando é que você dá o passo definitivo, o passo que distingue estar perto de estar dentro?” (p. 28)
Esse é o questionamento que surge a partir do que observamos antes, quando o incômodo com a realidade e a ausência de uma transformadora mudança leva a atos extremos. Mas a percepção dominante restringe-se a ver somente o mal em uma ação que, embora legalmente errada, e que tenha sido articulada para não ferir ninguém, também aponta para o que existe de errado na relação humana com outros animais.
Mas a mudança não vem quando a única ação observada como violência é a que culmina em um dano econômico, não havendo devida atenção ao que surge como justificativa para tal ação – a violência que resulta em danos físicos e em morte e que recebe um olhar amiúde indiferente por ser institucionalizada.
O que culmina na participação de Adelaide que levará à sua condenação e prisão é um acúmulo de insatisfações envolvendo a indiferença sobre outras vidas. Ainda na escola, ela participa de uma campanha contra a dissecação que recebe apoio principalmente porque os estudantes querem mais confrontar a instituição escolar do que estender consideração a outros animais (p. 33).
Sua infância também foi marcada pelo episódio em que ela recebeu um pintinho na escola, o levou para casa e quando ele se tornou frango sua mãe o deu para uma costureira que fez questão de expressar sua indiferença pelo animal: “Antes de levá-lo, a costureira disse junto à sua orelha, para que só ela ouvisse: vou fazer uma bela duma canja com ele” (p. 35).
Esses exemplos trazidos pela autora mostram que Adelaide sempre esteve às voltas com pessoas com quem não compartilhava sua percepção sobre os animais, chegando a confrontá-la e provocá-la, numa espécie de afirmação de que sua empatia não poderia prevalecer sobre a percepção da maioria.
Há nisso também uma questão de pertencimento, que é também o que levará Adelaide a se juntar a um grupo de ativistas pela libertação animal e a fazer o que fez, ao ver-se em um estado de maior convergência de valores inegociáveis.
Na prisão, Adelaide conhece Kennedy, de quem se torna protegida, e que também gosta de animais e diz esperar que algum dia ela queime outro laboratório de pesquisa (p. 47). Embora isso não esteja nos planos de Adelaide, o que não quer dizer que ela não deseja isso (afinal, ela não se arrepende do que fez), essa identificação ajuda a lidar com a realidade prisional.
No romance, construído a partir de muitas lembranças de Adelaide quando já está vivendo no Brasil, Adriana Lisboa referencia a consideração da protagonista por animais explorados para fins alimentícios quando evoca a relação dela com um santuário de animais, onde eles podem viver livres da exploração.
“O boi que tinha nascido sem os dois olhos, o galo que protegia as galinhas mais velhas, os porcos imensos — a fêmea uma verdadeira lady de duzentos quilos, comendo laranjas inteiras como quem beliscasse petits-fours no chá da tarde” (p. 51). A narrativa descreve os animais de uma forma que os identifica como sujeitos, como indivíduos.
Entre idas e voltas da consciência, a vida pregressa nos EUA e a retomada no Brasil, Adelaide lamenta o desmatamento da Mata Atlântica (não possui mais do que 10% de sua cobertura vegetal original) e a situação dos animais ameaçados, listando-os. Depois vem a lembrança de pessoas de classe média e alta que buscam o retorno a uma vida rural, mas sem a preocupação de evitar a conveniência e a hipocrisia.
“Num dia está aleitando uma ovelha no colo com uma mamadeira, um doce olhar de compreensão e carinho, para mais adiante assar a mesma ovelha com manifesta gratidão pelo corpo que o animal lhe doou em contrapartida por uma vida de amor e dedicação. É uma conta que não fecha” (p. 54).
A crítica de Adelaide remete à comum dissimulação, à necessidade humana de falsear bondade (que envolve também a apropriação dos termos “gratidão” e “doação” pela via da ressignificação com fim arbitrário) para justificar crueldade quando envolve o uso de animais. Afinal, pode a gratidão anular o mal da ação? Para o animal, que sentido pode ter tais palavras se isso não evita a violência? Agradecer tornará a experiência menos letal?
As vivências e lembranças de Adelaide, ou envolvendo Adelaide, são apresentadas entrecortadas, fragmentadas, assim como funciona a própria mente humana, o fluxo de consciência, que não segue, ou pelo menos não se restringe, a cronologias e controles.
Numa banca, Adelaide encontra um livro de bolso de Descartes, de quem vem primeiro a lembrança como vivisseccionista ou monstro, sendo para ela o primeiro um eufemismo do segundo. “O que vivisseccionava cachorros sem nenhum tipo de anestésico para estudar a circulação do sangue e atribuía os ganidos não à dor mas a um comportamento automático do organismo dos animais. Eles funcionavam, para Descartes, como autômatos” (p. 61).
Depois Adelaide reflete novamente sobre o impacto de incendiar um laboratório, ação que surge porque, segundo ela, o capitalismo só entende uma forma de protesto: destruição de propriedade. O incêndio é constante lembrança no decorrer do romance, dependendo do que ela vê ou sente. O “encontro com Descartes” motiva outra reflexão: “Mas como é possível funcionar num mundo em que, por exemplo, animais são torturados em pesquisas científicas? Todos os dias ela tem vontade de incendiar um laboratório daqueles. Gostaria de ter incendiado o laboratório de Descartes — com ele lá dentro” (p. 66).
Depois ela pensa em outros animais, como os peixes que estão no planeta há mais tempo do que os humanos. Mas nem por isso escapam ao nocivo impacto humano. Mas, sem demora, há o retorno de Descartes, que surge envolto por uma provocação baseada numa memória, na declaração dos ativistas sobre o laboratório queimado que chamam atenção para uma desproporcionalidade consequencial: “René Descartes, cristão devoto, torturou cachorros e entrou para a história como um dos fundadores da filosofia moderna. Nós fomos para a prisão” (p. 67).
O conflito em forma de pensamento, e que leva a um emaranhado de sentimentos, persiste porque o incêndio no laboratório não transformou a vida dos animais. Esse estado também desencadeia lembranças sobre a mudança que não ocorre ou como pode ser tão insatisfatoriamente provisória, como quando Adelaide e George estão panfletando contra o consumo de carne e um transeunte pega um panfleto. Ele diz que é terrível o que ocorre com os animais e que, por isso, ele ficará “uns quinze dias sem comer vitela” (p. 74). Ou seja, tempo o suficiente para que o incômodo gerado pelo panfleto tenha desaparecido e ele possa voltar a ignorar tudo que sabe.
Essa lembrança é permeada por pensamentos sobre o laboratório incendiado que surgem como uma espécie conflituosa de realização como compensação pela mudança que não ocorre em sua forma panfletária – ainda que a ação não tenha colocado um fim à situação de cruel exploração dos animais.
“Num certo sentido, ela se arrepende: todos os dias, o tempo todo. Por Sofia [que comete suicídio na prisão], se não por todos os outros motivos. Noutro sentido, ela acha glorioso. Não, não se tratava de olho por olho dente por dente, ela não compactua com isso. Mas por fim conseguiram ser levados a sério” (p. 75).
O ativismo a partir das experiências de Adelaide e das observações da narradora onisciente é apresentado como um trânsito de alentos e desalentos, em que há períodos e momentos em que um é mais constante do que o outro – o que também reproduz o que é muito comum entre ativistas dos direitos animais. Um desalento, por exemplo, é sucedido por uma situação em que, sem sequer esperar, Adelaide sorri diante de uma possível mudança:
“O pai pergunta se ela não quer um bife. Cida diz Nelsinho, você esqueceu? Ela não come carne. Não come? Por quê? Porque ela tem pena dos bichos. Adelaide deixa estar. O pai olha para o próprio prato. Mas então por que é que você botou esse bife para mim? Porque você come carne, Nelsinho. E porque você precisa comer fígado, o médico mandou. É bom para você. Ele empurra o prato. Adelaide acha graça” (p. 82).
Um dia, quando ouve os assobios dos saguis, considerados espécie invasora e uma “praga” no Rio de Janeiro, ela lembra que estão “capinando a mata para plantar boi. […] Adelaide pensa de novo. Morrer dos vivos. Viver dos mortos. O começo é o tempo todo e também o fim” (p. 83). Nessa observação, ela evoca a contradição de quem vê uma espécie como invasora enquanto expulsa tantas, e sendo o próprio ser humano o responsável pelo que ele chama de “invasões de outras espécies”.
Em diversos momentos de reflexão, Adelaide se vê como se estivesse de um lado; e de outro, senão toda a humanidade, a maior parte dela. Seu sentimento é de pesar:
“Ao longo da minha vida foram tantas e tantas conversas, discussões, tanto bate-boca, ela diz. Argumentações infinitas. E sempre, sempre a agressão ou o deboche quando as pessoas ficam sem resposta. E no fim das contas, o que essas pessoas consideram um truísmo inquestionável: são só animais. São só ratos, bois, vacas, porcos, coelhos, rãs. São só peixes, crustáceos, galinhas” (p. 98).
Sofia, também ativista e amiga de Adelaide que comete suicídio na prisão, deixa uma nota em que afirma que “certas culturas humanas vêm travando uma guerra contra os animais há milênios. Escolhi lutar ao lado de vacas, porcos, galinhas, morcegos, gatos, baleias, chimpanzés. Sou apenas a vítima mais recente nessa guerra. Mas esta noite escapei da prisão e estou voltando para casa, para a terra, para o local das minhas origens” (p. 137). A mensagem de Sofia reproduz uma percepção muito comum entre defensores dos direitos animais a partir do século 19, na observação de que muitos humanos estão em guerra contra outros animais, e sequer reconhecem o que fazem dessa forma, que também é parte de uma tradição antropocêntrica de negação.
Mesmo quando Adelaide sai para dar uma volta na floresta, ela observa a floresta como se já não fosse floresta. “Aquelas trilhas domesticando um pedaço de floresta fazem com que ela pense nos animais de um zoológico. Olha ao redor e tudo parece falso. Tudo parece uma espécie de cenário que a qualquer momento vão mandar desmontar” (p. 146). A observação da protagonista dialoga com a equivocada percepção que se tem tão comumente do campo, como se o campo fosse parte da própria natureza e não resultado da interferência humana. Não por acaso muito do que comumente pode ser chamado de “natural”, na realidade pode ser artificial.
Mais tarde, a obra evoca o dia em que Sofia fala com Adelaide sobre um olhar para o animal não humano a partir do ensaio “O Animal que Logo Sou”, de Jacques Derrida, em que ele, nu, interpela a si mesmo a partir do olhar de um gato (p. 149). Esse pensamento, impossível sem o reconhecimento do não humano como seu próprio sujeito, motiva um questionamento da narradora que envolve tantos outros animais, incluindo os inconsiderados para uma relação que não seja de exploração e consumo:
“O que veem as novilhas no pasto ao seguir com os olhos o carro que passa na estrada? O que vê o gato no homem nu? O que ‘vê’ o boi a quem faltam os dois olhos quando sua língua roça na palma da mão de uma mulher? O que via o beija-flor que esvoaçou ao redor de Adelaide durante uns bons cinco minutos, outro dia, na varanda? Ela se imobilizou por completo para deixar que ele se aproximasse. […] O que será que viam, em suas gaiolas, as chinchilas no galpão, no dia daquela inocente visita a convite dos amigos que tinham casa em Teresópolis? Adelaide entrou ali não sabendo muito bem o que esperar. Não pensou muito a respeito. Achava, talvez, que as chinchilas seriam vendidas como animais de estimação ou algo assim. A família caminhando por ali, entre as gaiolas, o pai, a mãe, seu filho pequeno e o cachorrinho. Não teve coragem de fazer a pergunta, mas mais tarde, já em casa, com os olhos esbugalhados de terror, leu: as formas mais comuns de executar as chinchilas para extração da pele são o uso de gás, a eletrocussão ou a quebra do pescoço. A eletrocussão é feita com um eletrodo na orelha e outro na cauda do animal. Uma leitura levou a outra e depois a outra e foi como ter aberto uma das portas do inferno. E ela soube que as coisas nunca mais seriam as mesmas, que ela nunca mais seria a mesma. As palavras daquele ativista: a partir do momento em que a venda foi retirada dos seus olhos e ele viu a realidade do que acontecia ao seu redor, a partir dali foi como viver em luto permanente. O animal que ela segue com os olhos, com as mãos, com os ouvidos, o animal que a segue (tigre-de-bengala na floresta, baleia-azul no oceano Pacífico, novilha numa estrada rural): como entendê-lo sem cair na tentação de antropomorfizá-lo, sem querer vesti-lo com os seus atributos? Como entendê-lo mesmo sem entendê-lo totalmente? Como respeitá-lo, mesmo que não o entenda totalmente? O que ele espera dela? Será que ele espera alguma coisa dela? Derrida escreveu, Sofia disse, que era como se o gato o levasse de volta à narrativa terrível do Gênesis. E o filósofo se perguntava quem teria nascido primeiro, antes dos nomes. “Quem viu o outro chegar? Quem terá sido o primeiro ocupante — e, portanto, o senhor? Quem permanece sendo o déspota desde sempre?” (p.149-150-151).
A prisão e as experiências que não foram transformadas como Adelaide gostaria, apesar de tudo, não impingem nela um conformismo, e porque agir assim seria uma negação de seu próprio ser, ainda que ela não deixe de crer que não há beleza que justifique tanto mal:
“[…] na sua opinião, todas as sinfonias de Beethoven não justificam um único matadouro” (p. 163).
Referência
LISBOA, A. Os Grandes Carnívoros. 1.ed. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2024. 176 p.
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Uma resposta
Quando fiquei sabendo do lançamento desse livro, logo pela sinopse fiquei entusiasmado pela protagonista ser uma ativista pelos direito dos animais. Mesmo que outras situações de violência aconteçam na narrativa, as provocações que a autora escreveu são pertinentes, sem ser “panfletária”. O que não diminuiria em nada o vigor literário do romance.