Há mais um pintinho prestes a ser macerado

Há mais um pintinho prestes a ser macerado em uma máquina criada para esse fim. Observo a totalidade de seu corpo, de sua condição física. Prende minha atenção as asas levantadas sem a aptidão para voar.

Movem-se e movem-se sem parar. É frenético. Por que não correspondem à sua ânsia desesperada? Penso na culpa, que não vem das asas que ficam à altura do topo da cabeça. Não é preciso discutir sobre instinto ou consciência.

O pequeno corpo bem formado, com bico, olhos, pés que se agarram onde podem para não escorregar, é destruído num instante. A pequena força nos pés e nas asas, a intensidade do corpo que se move sem conseguir sair do lugar, tudo desaparece.

Há vestígios amarelos, de penas que grudam no equipamento. Chamo-o de “eterno pintinho”, não porque não pode morrer, mas porque chega para morrer o tempo todo. Não pode sair dali e não é permitido que deixe de morrer. É criatura simbólica de um violento fim.

De que valem as garras se não permitem que possa agarrar? Escolhem para ele uma máquina em que não tenha chance de não deslizar. Que culpa tem as garras? Também não posso culpá-las.

A engenhosidade da máquina é cruel e intrigante. O mantém entre duas partes sólidas e escuras que são como duas marretas sem cabo. Desenvolvida para vencer vulnerabilidades, fragilizar os fragilizados, inferiorizar os inferiorizados. É um instrumento bruto de reafirmação.

“Não pode viver” – é a frase que vejo nessa máquina. Também não pode escolher, não pode ser, não pode querer. Poderia colocá-lo na palma da minha mão, e sentiria sua leveza, sua placidez, sua curiosidade. “O que gostaria de fazer?” – poderia perguntar sem esperar resposta.

Para onde iria se o tirassem da máquina? Como reagiria? Isso importa? Mais relevante seria não estar ali. O estar ali que é também uma forma violenta de não estar. Ainda penso no corpo que não existe, que dá lugar a um corpo que logo não existirá.

Observação

De acordo com dados da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), mais de sete milhões de pintinhos (machos) são descartados por ano no Brasil porque não produzem ovos e não têm a genética desejada pela indústria da carne.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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