Matadouro é lugar triste

Ilustração: Sue Coe

Pediram que definisse em poucas palavras o que é um matadouro. “É um lugar triste, onde entram vidas e saem pedaços comestíveis de morte.” Refutaram que a morte não pode ser comestível.

“Acho que sim, se o que comem são matérias mortas. Quando falo em pedaços comestíveis, vocês ou outros pensarão em carnes, que são partes mortas de animais. Então, sim, pedaços comestíveis de morte, já que pessoas tendem a comprar e consumir tais partes desconectadas de vida.”

Alguém gargalhou bem alto ao ouvi-lo. Não sentiu-se mal nem achou que fosse necessário reagir. Sempre teve em mente que há momentos em que o seu silêncio posterior tem melhor efeito que palavras.

“Não sou do tipo que retribui clara tentativa de provocação e acho que o outro terá reservado, mesmo que a contragosto, lugar para minhas palavras e minha sequente ausência. Imagino que sua gargalhada é reação a uma indisposição, e nem toda indisposição é de todo ruim. Prefiro pensar que são defesas que recebem pressão da obviedade que vem com o choque de realidade. Acredito nesse tipo de afrouxamento involuntário da resistência.”

Já sozinho, lembrou de um conhecido que dizia ser o seu apetite pelos animais maior que qualquer disposição em não comê-los, que não via-se, em suas palavras, “sem rasgar um belo dum pedaço de bife”.

“Meses depois, o encontro e conta-me que carne já não o satisfazia, e não sabia por qual razão. Só de vê-la sentia o estômago sem querer recebê-la e ainda estimulava uma ideia dum gosto estranho na boca. Apetite zero por criaturas com olhos e vontades. Bom, mas a mim não importava naquele momento as suas razões. O que agradou-me foi apenas o óbvio. Aí está mais um que não financiará a esfola dum pobre animal. E tinha decisão em suas palavras, que foram sim validadas.”

No mesmo dia, ao lado de um semáforo, viu caminhões transportando bois. “Em sequência e tinham placas de prestação de serviços para matadouro. Estava muito quente e, vendo algumas línguas, senti a sede bovina. De repente, partiram. E pensei, como sempre, que matadouro é um lugar triste – onde o jejum da morte dum animal leva ao prazer doutro animal.”

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Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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