Montaigne: Matança de animais é retrato da decadência humana

“Os animais foram sacrificados pelos bárbaros para os benefícios que deles esperavam”, avalia Montaigne (Imagem: Getty)

O francês Michel de Montaigne foi um dos mais importantes filósofos e humanistas do Renascimento. Ele entrou para a história como o criador do gênero literário ensaio, situado entre o poético e o didático. No século XVI, inspirado pelo filósofo grego Plutarco, a quem via como um mestre, Montaigne criticou a irracionalidade e o preconceito humano em relação às outras espécies. Seu trabalho, muito avançado para a época, influenciou pensadores como Friedrich Nietzsche, Jean-Jacques Rousseau e Isaac Asimov.

Contra o consumo de carne, Montaigne defendeu os animais por meio de suas obras. Em “Ensaios”, publicado em março de 1580, considerado um dos livros não ficcionais mais influentes de todos os tempos, o pensador declarou acreditar que foi pelo massacre dos animais que o ferro tingido de sangue esquentou pela primeira vez. “E com que devoção e respeito vejo a própria imagem da amizade, tão pura, nos animais!”, escreveu.

Ao aprofundar-se na história e na relação da humanidade com as outras espécies, o pensador francês conta que antes do surgimento do cristianismo os turcos realizavam muitas obras de caridade em benefício dos animais, chegando a construir hospitais para espécies não humanas.

Os romanos tinham um serviço público para a alimentação dos gansos. Já os atenienses, por volta de 490 a.C., ordenaram a libertação das mulas e dos burros após a construção do Templo Hecatompedon, permitindo que circulassem por qualquer lugar, sem restrição. No mesmo período, os agrigentinos seguiam a tradição de enterrar com dignidade os animais. Muitos monumentos suntuosos foram erguidos para homenageá-los.

“E duravam, visíveis, por vários séculos adiante. Os egípcios enterravam lobos, ursos, crocodilos, cães e gatos em lugares sagrados. Embalsamavam seus corpos e ficavam de luto. Címon [estadista e general ateniense] fez uma sepultura honrosa para os jumentos (…). O político Xantipo mandou fazer uma tumba para seu cão num promontório, na costa do mar, o qual desde então conservou esse nome”, registrou Michel de Montaigne.

Obrigação em zelar pelos animais

O filósofo defendia que a humanidade deve justiça aos seus e benevolência às outras criaturas. No relacionamento entre humanos e animais há uma obrigação do primeiro em zelar pelos demais. “Não temo confessar a ternura de minha natureza tão pueril que me leva a não conseguir recusar ao meu cão a festa que me oferece fora de hora”, confidenciou em “Ensaios”.

E foi estudando o trabalho de Plutarco que Montaigne descobriu que não era exatamente a figura caricata do gato ou do boi, por exemplo, que os egípcios, enquanto politeístas, adoravam. O que eles amavam nesses animais era a imagem das faculdades divinas materializadas em suas diversas qualidades, como paciência, singeleza e vivacidade. Além disso, viram que os animais eram incapazes de suportarem a clausura, e isto representava a liberdade que amavam mais do que qualquer faculdade divina.

Por outro lado, o filósofo observou que a religião dos antigos gauleses, povo celta que deu origem aos franceses, incutiu a ideia de valores diferentes para os animais. Eles acreditavam que como a alma é eterna e passível de mudar de um corpo para o outro, o destino de cada um dependeria de sua conduta.

“As almas dos cruéis entrariam nos corpos dos ursos, as dos ladrões nos corpos dos lobos, e as dos mentirosos nos corpos das raposas. E depois de vários anos e, através de mil figuras, seriam chamados às suas formas humanas originais, uma vez que teriam sido purificados pelo Rio Lete [que tinha Hades com guardião, o deus do mundo inferior e dos mortos]”, citou Montaigne.

Os gauleses levavam a sério a crença de que os homens valentes poderiam renascer como leões, os voluptuosos como porcos, os covardes como cervos ou lebres e os maliciosos como raposas. “Eu, inversamente, o que tenho de bom o tenho pelo acaso do meu nascimento (…). A inocência que há em mim é uma inocência inata, de pouco vigor e sem arte. Entre os vícios, odeio cruelmente a crueldade, tanto por natureza como por julgamento, como sendo o extremo de todos os vícios”, enfatizou.

Quanto mais animais mortos, mais bárbaro é o homem

Uma das cenas que mais marcou a vida do pensador foi o testemunho da degola de um frango. Além disso, Michel de Montaigne não suportava ouvir os gemidos das lebres frequentemente atacadas por cães de caça. “A caça é uma forma violenta de prazer. Os que devem combater a volúpia a usam de bom grado, mostrando que ela é totalmente viciosa e irracional”, criticou.

O filósofo aponta o século XVI como um período de exemplos inacreditáveis de legitimação da crueldade, intensificados principalmente pelas guerras. O passado, segundo ele, não era pior que o presente. Ainda assim, o pensador não conseguia acostumar-se com tanta violência. E quanto mais animais eram mortos, mais bárbaro o homem se tornava, ampliando a morte dos seus.

“Eu mal era capaz de me convencer, antes de tê-lo visto, que pudessem existir almas tão ferozes que cometessem assassinatos por prazer – retalhar e cortar os membros de alguém, aguçar o espírito para inventar torturas inusitadas e mortes novas, sem inimizade, sem proveito, e só para o fim de gozar do agradável espetáculo, dos gestos e movimentos lastimáveis, dos gemidos e dos gritos (…)”, lamentou.

E levando em conta esse tipo de experiência, Montaigne escreveu que julgava incoerente as opiniões mais moderadas de raciocínio que tentavam apontar as semelhanças entre os seres humanos e os animais. “Quando tentam compará-los a nós, sem dúvida rebaixo muito nossa presunção e renuncio de bom grado a essa imaginaria realeza sobre as outras criaturas. Mesmo se esse não fosse o caso, há todavia um certo respeito que nos liga e um dever geral da humanidade em relação aos animais, que têm vida e sentimento”, pondera.

“Não pego animal vivo a que não restitua liberdade”

O pensador não via razão para o ser humano perseguir e matar um bicho inocente, que além de não ter defesas, não causa mal a ninguém. “E o cervo que comumente, sentindo-se sem fôlego e sem força, e não tendo outro remédio, vira e rende-se a nós mesmos que o perseguimos, pedindo-nos piedade por suas lágrimas, sangrando e, lembrando, por seus queixumes, um suplicante. Isso sempre me pareceu um espetáculo muito desagradável. Não pego animal vivo a que não restitua liberdade. Pitágoras fazia o mesmo, comprando-os dos pescadores e dos passarinheiros para libertá-los”, assinala.

Platão, em sua perspectiva da era de ouro, destaca que uma das maiores conquistas da humanidade foi o estabelecimento da comunicação com os animais, a capacidade de reconhecer as verdadeiras qualidades não humanas. Nesse período, foi validado o valor da inteligência animal, garantindo à humanidade o privilégio de traçar um futuro próspero e harmonioso. “É preciso mais provas do que isso para condenar a imprudência humana em relação aos animais?”, questionou Michel de Montaigne.

Para o pensador, as índoles sanguinárias em relação aos animais atestam uma propensão natural à crueldade. Ele também apontou como retrato da decadência humana a emergência dos espetáculos de mortes de animais na Roma Antiga. A ânsia por sangue e violência cresceu, e mais tarde surgiram os gladiadores. Ou seja, a violência do homem contra o homem é um desdobramento da barbárie iniciada com a suplantação dos animais.

“A própria natureza (temo) fixou no homem um instinto de desumanidade. Perdera-se o prazer de ver os animais brincando entre si e acariciando-se; e ninguém deixa de senti-lo ao vê-los se dilacerarem e se desmembrarem. Os animais foram sacrificados pelos bárbaros para os benefícios que deles esperavam”, avalia Montaigne.

Um homem à frente do seu tempo

O ensaísta inglês William Hazlitt expressou admiração por Michel de Montaigne, declarando que, distante do fanatismo e do pedantismo, ele foi o primeiro autor que teve a coragem de dizer como se sentia enquanto ser humano. Não era pedante nem fanático.

À época, seu ensaio, recheado de anedotas e reflexões pessoais não foi bem recebido pelos leitores. Consideraram sua obra deficiente, talvez porque Montaigne tenha revolucionado a literatura não ficcional ao incluir-se como matéria de seu próprio livro, gerando desconforto nos leitores mais conservadores. Mais tarde, Montaigne acabou por ser considerado um dos melhores escritores de seu tempo.

Seu comentário mais famoso e cético é: “Que Sçay-je?”, que significa “O que sei?” em francês da Idade Média. Até hoje Montaigne é considerado um autor moderno, isto porque examinava o mundo através dos próprios olhos, conciliando bagagem cultural, observação e experiência. E a partir daí formulava juízo sobre tudo. Séculos após sua morte, foi considerado o autor mais acessível do Renascimento. Depois de unir narrativa pessoal e sabedoria intelectual, Montaigne tornou-se referência para a literatura moderna não ficcional.

Saiba Mais

Michel de Montaigne foi um político, jurista, filósofo e humanista francês. Para ele, a educação de qualidade só é possível quando a formação de indivíduos privilegia o discernimento moral aliado à prática.

Montaigne, que só teve o seu trabalho devidamente reconhecimento após sua morte, também foi influenciado pelo jônico Pitágoras, pelo ateniense Sócrates e pelo neoplatônico Porfírio.

O pensador nasceu no Castelo de Montaigne em 28 de fevereiro de 1533 e faleceu no mesmo local em 13 de setembro de 1592.

Referências

Michel de Montaigne. Rosa Freire D’Aguiar. Os Ensaios. Penguin – Companhia das Letras (2010).

The Autobiography of Michel de Montaigne. Marvin Lowenthal. David R. Godine, Publisher (1999).

Williams, Howard. The Ethics of Diet (1883). University of Illinois Press (2003).

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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