No churrasco, só via a miséria do porco

Ilustração: Tommy Kane

Foi pela primeira vez a um churrasco em que um espeto atravessava um grande porco. O animal inteiro ali e o nariz queimado – e os olhos lacrados pelo derretimento da pele. Achou aquilo terrível, primitivo, bárbaro.

“E o espeto ia vários centímetros além da traseira do pobre animal, lembrando-me uma vítima dum empalamento medieval. Ele não tinha olhos para me ver, mas era como se observasse-me mesmo sem tê-los.”

A pele queimada, formando casca grossa, que chamam de pururuca, e multiplicando-se por tantas partes do corpo, não estimulavam nele apetite como nos outros, que salivavam como se diante duma criatura nunca antes viva, ou talvez apercebessem sim e apenas não se importassem.

“O que vi deu-me ideia de densas feridas. É o que penso e não posso evitar. Imagino então que pessoas alimentam-se das feridas dos animais. Pode soar estranho falar em feridas num corpo sem vida, mas que posso fazer se é o que vejo e como entendo a violação de seus corpos para consumo?”

Quis saber a origem do animal e disseram-lhe que fora abatido ali mesmo, e que sangue fora colhido para usar nos embutidos que seriam servidos aos convidados, misturado à carne de outros animais, quando já não restasse carcaça do suíno.

As orelhas do porco também viraram outra coisa – duas bolas deformadas. O rabo, que já não era rabo, denunciava que fora cortado com alicate ainda na infância.

“Tenho comigo uma expressão de agonia daquele suíno. Não vi sua morte, e não acho que fosse necessário vê-la, mas posso pelo menos reconhecer como deve ser terrível quando roubam-lhe a vida e expõem o espólio de sua morte para o deleite de muitos.”

Viu fumaça indo longe e imaginou quantas vezes por dia o céu é tomado por hidrocarbonetos gerados a partir da gordura de criaturas mortas.

“A mim, uma fumaça fúnebre. E quantos o enxergaram sem apetite? Estava eu lá, sozinho no meu desconforto que vinha do desconforto do porco com sua carcaça invadida de um lado a outro por um espeto de onde escorria gordura – pingava. E o cheiro proporcionava prazer em muitos, e em mim somente enjoo e comiseração por quem já não existe.”

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Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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