O pescador que desistiu de matar peixes

Orlando levou um susto ao ouvir o dourado se chocando contra o casco do barco (Foto: David Morimoto)

Como fazia todos os dias, Orlando lavou o rosto, escovou os dentes, preparou a tralha, se despediu da esposa, da neta e saiu de casa na silente escuridão da madrugada. Durante a caminhada até a barranca do Rio Paraná ganhou a companhia de cigarras e grilos que cantavam com a sofreguidão de quem parecia ansiar pela alvorada.

Quando encostou no bambuzal a poucos metros da margem, acendeu o palheiro e observou no horizonte o sol saindo ocioso por trás das cortinas de água – lançava um brilho que dourava o Paranazão até onde os olhos poderiam alcançar. “Que coisa linda! Faz valer pular da cama cedinho assim”, comentou tragando e baforando uma fumaça ruça que saía quente da boca e logo arrefecia, deixando a língua amarga e o peito chiando. Se recordou dos pedidos exaustivos da mulher para que largasse o fumo de corda. Teimoso, ainda fumava dois ou três toda manhã.

Antes da última tragada, o cenho grave de Orlando deu lugar a uma gargalhada expansiva que fez sua barriga doer ao contar oito sapos coaxando e brincando no cerne de um brejo. “Até parece disputa pra ver quem canta mais alto. E tem quem diga que os bichos não são espertos”, comentou quando o menor dos sapos se esquivou de uma investida ardilosa do maior. Sem mais distrações, caminhou até o Rio Paraná, se ajoelhou, reverenciou o céu, a terra e a água. Subiu sobre o barco, o desamarrou, ajeitou a tralha e ligou o motor. Seguiu criando pequenas ondas, cortando a água que se tornava menos turva e mais cristalina conforme se distanciava da margem.

Massageando seus poucos cabelos grisalhos, o vento temperado e úmido trouxe lembranças da mocidade, dos amigos que partiram, dos familiares falecidos. Com 60 anos, sentia-se cansado, não pela ação do tempo sobre o corpo. O rosto estriado não o incomodava. Orlando simplesmente não sabia o que havia de errado em sua vida e seguia fazendo o que sempre fez. Pescador desde a infância, morou em cinco ilhas no seio do Paranazão. Pescou tanto em mais de 45 anos que deixou de sentir prazer em tirar da água as preciosidades da natureza.

— Depois que criaram a barragem, muitas espécies de peixes sumiram, é o que todo mundo diz, inclusive eu. Será que a gente também não tem culpa nisso? Todos esses anos de pesca deve ter traumatizado a natureza – refletiu coçando o queixo levemente enrugado e queimado pela frequente exposição solar.

Durante décadas, Orlando sorriu para fotos, segurando peixes de até 80 quilos. Abasteceu muitos congeladores de peixarias em um raio de mais de 100 quilômetros. Mas nos últimos cinco anos deixou de ver os animais que tirava da água como troféus. Um dia, se irritou quando o amigo Laércio, um de seus clientes, ameaçou romper negócios, alegando que ele estava entregando poucos peixes.

“Parece que não sabe pescar mais. Tem piá aí que já tá te deixando pra trás, meu amigo. Vai dizer que já esqueceu que te chamavam de Zóio de Anzol? Vamos despertar aí!”, reclamou Laércio. Durante a travessia da Lagoa do Jacaré, Orlando se recordou do episódio na peixaria. Não disse nada a Laércio e continuou pescando por pressão que não reconhecia.

Num final da tarde, depois percorrer o Rio Bahia, retornou à margem. Desanimado, viu a própria casa despontando na ladeira. Desligou o motor do barco e ficou em silêncio, ora observando a água, ora o céu. O pescador não queria estar ali, e postergava o inevitável amargando volatilidade de uma crise existencial.

Entristecido, cochilou com a cabeça escorada sobre o colete salva-vidas. A noite ameaçava surgir e ele não tinha pescado nada. “O que vão pensar de mim?”, se perguntou. O sol foi piedoso; cobriu seu corpo com uma luz morna, até que meia hora depois levou um susto ao ouvir algo se chocando contra o casco do barco.

Preparou a vara de pescar e a lançou na água com destreza, como se chicoteasse o leito. Em menos de minuto, sentiu uma fisgada no anzol e a vara envergando. Enquanto se esforçava para puxá-la, um peixe se debatia violentamente sob a água – era um dourado que cintilava.

Deitado à força no interior do barco, o peixe de pelo menos seis quilos lutou com vigor, se debatendo em cima de um pedaço de lona. Orlando franziu a testa, cerrou os dentes e evitou olhar diretamente para o animal. Seus olhos doíam. Tirou o peixe do barco, o enrolou na lona para não ter de observá-lo e caminhou até a peixaria. Lá, colocou o dourado sobre uma mesa com vestígios de vísceras e sangue seco nas rebarbas e gritou:

— Ô de casa! Ô Laércio! Vim trazer um dourado. Tu disse que faz tempo que não recebe nenhum. Pega logo aqui que quero ir pra casa.

— Tô aqui no fundo, Orlando. Venha me dar uma mão. Preciso mudar a posição dos congeladores.

Mesmo a contragosto, Orlando ajudou Laércio. De volta à recepção da peixaria, o dourado não estava mais lá, somente o pedaço de lona que o envolvia. O pescador levou as mãos à cabeça e seu coração disparou.

— Não acredito nisso! Não é possível que levaram o peixe daqui! O que eu vou fazer agora?

Cerca de cem metros ladeiro abaixo, ficou chocado quando viu o dourado pulando, tentando chegar às margens do Rio Paraná. Então correu até ele e, antes que alguém o fizesse, o tomou nos braços e continuou descendo, sem se preocupar com as correias do chinelo que se desfaziam pelo caminho.

Com olhos escuros e fixos, e uma boca que abria e fechava o tempo todo, o peixe parou de se debater e pela primeira vez o pescador enxergou o próprio reflexo nas escamas do animal. Mais do que tudo, o dourado ansiava pela água. E o cheiro que emanava de seu corpo não era de carne, mas sim de vida. Sob a luz do poente, assim que o peixe foi lançado ao rio, Orlando renasceu e o dourado desapareceu.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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