O que leva alguém a trabalhar matando animais?

Foto: Aitor Garmendia/Tras Los Muros

Há inúmeras respostas e inferências sobre o que leva a alguém a trabalhar matando animais. Uns podem dizer que quem submete-se a isso o faz por necessidade, outros que por algum tipo de predisposição à violência – ou os dois.

Já conversei com pessoas envolvidas no abate de animais ao longo dos anos, até para desenvolver meus textos, e acredito não ter conhecido quem sinta prazer em matar animais em matadouros, o que não significa a inexistência de outras realidades, embora eu suspeite que as outras sejam representativas da minoria.

É importante a consideração de que a legitimação e institucionalização de uma prática, por mais que seja violenta e terrível, é o que garante sua normalização e faz parecer “certo causar um mal” que é resultado de uma alta demanda consumerista.

Se você vive em um mundo que te diz que matar animais em uma plataforma industrial não é errado, e que bilhões de pessoas alimentam-se deles, quem atua matando animais precisa apenas acreditar nisso. Ademais, o estranhamento tende a diminuir com o tempo, quando a desconexão com os animais é facilitada pela continuidade, por sua mecanicidade.

Uma de minhas conclusões, com base em conversas com quem trabalhou matando animais, é que a proximidade continuada com os animais em um contexto de “desanimalização” favorece um distanciamento. Quanto mais animais são mortos, mais é possível sentir-se como se eles não estivessem ali – a prática torna-se um exercício de golpear alguém que não é visto como alguém, não importando seus movimentos, se tem olhos e uma variação de expressões.

Isso também pode ser explicado por conceitos como “disfunção narcotizante” e “trauma secundário”, que têm como consequência uma inibição ou insensibilidade gerada pelo impacto da superexposição que potencializa a banalização.

Claro, alguém pode recorrer ao viés moral e individual da prática. Afinal, quem tira a vida lida com o impacto direto dessa industrialização da morte, diferente de quem financia, e pode crer eximir-se de responsabilidade sobre esse processo porque sua consciência é direcionada ao produto, não à origem. E alguém pode insistir em perguntar: Por que essas pessoas não procuram outro trabalho? Como têm coragem de matar animais indefesos?

Não existe resposta única, mas em um mundo onde os animais são vistos como “criaturas de alta disponibilidade comercial”, não é tão simples olhar para alguém e imaginar que essa pessoa compartilhará de nossa percepção sobre os animais. Isso explica por que há pessoas que passam anos ou até décadas trabalhando em matadouros enquanto outras o abandonam nos primeiros dias, semanas ou meses.

É como acreditar que todas as pessoas deixarão de alimentar-se de animais a partir do reconhecimento da crueldade. Há consumidores que não são impactados pela violência contra os animais. Pode ser uma questão de insensibilidade? Sim, mas insensibilidade inata, aprendida, desenvolvida?

Pode ser um efeito de naturalização ou de irreconhecimento sobre a implicação da prática, porque a insensibilidade também pode ser resultado da virtualização da realidade, se o impacto que reconhecemos não é o impacto que atinge o outro na prática. Assim há uma construção consciente cincada ou fragmentária do que é real, e que tende a neutralizar e rejeitar impactos e suas inerentes contradições.

Há pessoas que estabelecem barreiras de discernimento, que apegam-se a frações consentâneas de realidade, moldadas na segurança da conveniência. Perdi as contas de quantas vezes ouvi pessoas narrando experiências familiares envolvendo abate doméstico de animais: “Meu avô era um homem bom, mas não esqueço quando ele torceu o pescoço de uma galinha como se ela não fosse nada.”

Eu poderia dizer que “o avô” então era um ser humano terrível e nada do que ela dissesse de bom sobre ele poderia ser verdade. Porém, acredito que o avô dela fez o que fez porque infelizmente não viu a galinha na galinha que matou – viu o que não era, mas o que queria que fosse, em um processo cultural de irreconhecimento da galinha, que é inerente ao ato de criá-la para fim alimentício – e a matou baseando-se nisso, numa semeadura costumária de estranheza.

Posso dizer que o ato foi cruel, bárbaro, vil, mas não acho que posso dizer que o avô dela era um homem cruel, bárbaro e vil com base nesse exemplo. Afinal, se acredito nisso, como posso acreditar que pessoas podem mudar? E há exemplos de pecuaristas e ex-funcionários de matadouros que tornaram-se veganos

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *