O que representa um corpo pendurado no matadouro?

Foto: Tommaso Ausili

Posso dizer que um corpo pendurado de ponta-cabeça no matadouro é apenas parte trivial do processo de abate, etapa que leva à oferta de um produto desejado pelo consumidor.

Também posso dizer que é representação do domínio humano sobre um corpo não humano – que alguém foi vencido por sua vulnerabilidade, incapacidade de resistir à finalidade.

Se levamos essa ação para uma avaliação de vitória e derrota, o que mais podemos dizer? Talvez seja uma percepção simplista para uma situação complexa, mas a violência, quando indissociável de derrota, é sempre evocativa.

E por que não dizer também que derrotamos outros animais com nossas próprias derrotas, se são sobre exercício de violência unilateral? Então a que não é nossa seria uma derrota?

Ainda que livro-me de uma ideia de derrota, partindo da reflexão de que vitória-derrota é construção humana, que valida também configurações de poder, a situação do corpo não humano, que vale mais pelo que já não é, é de desanimalização.

Não que seja difícil reconhecê-lo como foi, mas que o propósito de tê-lo pendurado de ponta-cabeça é exercício de asseveração de sua ausência. Sobre isso, é pensável o valor atribuído ao animal vivo e depois morto.

Se criado para a morte precoce, comum ao sistema alimentar, logo o “estar vivo” existe para o “deixar de estar”. Afinal, corpos mortos são mais valiosos do que corpos vivos quando o objetivo é alcançado em situação de controle.

Assim a vida ausente representa um valor crescente em um contexto de alta demanda por mortes comercializáveis; e os atributos invertem-se, porque o que se almeja em um animal vivo não é o que se almeja em um animal morto, já que tudo que se quer é que não seja o que (quem) era, em um processo reconhecido como fundamental de dissociação.

Então o corpo pendurado de ponta-cabeça já não é um corpo, mesmo que seja, e independente de fragmentação, porque sua transição de espaço, do matadouro para um ambiente de compra, permite identificá-lo com termos comerciais que não assumem a evidenciação de sua corporeidade, e que tradicionalizam e fortalecem a apreciação consumerista.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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