Coetzee: “Os matadouros estão sempre à nossa volta”

A obra de caráter filosófico gira em torno dos conflitos vividos pela professora e conferencista vegetariana Elizabeth Costello (Fotos: Reprodução/Getty)

Hoje de manhã levaram-me para dar uma volta de carro por Waltham. Parece uma cidade agradável. Não vi nenhum horror, nenhum laboratório de testes de substâncias químicas, nenhuma fazenda industrial, nenhum matadouro. Porém tenho certeza que essas coisas existem aqui. Devem existir. Elas simplesmente não se mostram. Estão à nossa volta neste momento, só que, em certo sentido, não sabemos que estão ali.

Vou falar abertamente: estamos cercados por uma empresa de degradação, crueldade e morte que rivaliza com qualquer coisa que o Terceiro Reich tenha sido capaz de fazer, que na verdade supera o que ele fez, porque em nosso caso trata-se de uma empresa interminável, que se reproduz de forma automática, trazendo incessantemente ao mundo coelhos, ratos, aves e gado com o propósito de matá-los.

E minimizar, dizer que não há comparação, que Treblinka foi de certa maneira uma empresa metafísica dedicada a nada além da morte e da destruição enquanto a indústria da carne, em última instância, se dedica à vida (pois, afinal, não reduz suas vítimas a cinzas, já que, uma vez mortas, nem as enterra, mas, ao contrário, corta-as em pedaços, coloca-as no refrigerador e as empacota para que possam ser consumidas no conforto de nossos lares) é consolação tão pequena para as vítimas como teria sido, perdoem o mau gosto do que vou dizer, pedir aos mortos de Treblinka que desculpassem seus assassinos porque a sua gordura corporal era necessária para fazer sabão e seus cabelos para estofar colchões.

Perdoem-me, repito. É o último expediente barato de que vou lançar mão. Sei como esse tipo de conversa mobiliza as pessoas, provocando radicalização de posições, e que apelar para tais expedientes só piora as coisas. Quero encontrar um jeito de falar com meus semelhantes humanos que seja calmo e não inflamado, filosófico e não polêmico, que traga iluminação e não divisão entre puros e pecadores, redimidos e danados, carneiros e bodes.

Eu tenho acesso a essa linguagem, eu sei. É a linguagem de Aristóteles e Porfírio, de Agostinho e Aquino, de Descartes e Bentham, de Mary Midgley e Tom Regan em nossos dias. É uma linguagem filosófica que podemos usar para discutir e debater que tipo de alma têm os animais, se eles possuem razão ou se são, ao contrário, autômatos biológicos, se têm direitos em relação a nós ou se simplesmente temos deveres em relação a eles.

Tenho acesso a essa linguagem e de fato vou recorrer a ela em alguns momentos. Mas o fato é que se vocês quisessem alguém para vir aqui lhes traçar uma distinção entre alma mortal e alma imortal ou entre direitos e deveres, teriam chamado um filósofo, não uma pessoa cuja única atividade digna de atenção é ter escrito histórias sobre pessoas inventadas.

Poderia recorrer a essa linguagem, como disse, de modo nada original, de segunda mão – que é o melhor de que sou capaz. Poderia contar a vocês, por exemplo, o que acho da tese de santo Tomás de Aquino segundo a qual, posto que só o homem é feito à imagem de Deus e participa da essência de Deus, o modo como tratamos os animais não tem nenhuma importância salvo na medida em que ser cruel com os animais pode nos acostumar a ser cruel com os homens. Posso perguntar o que santo Tomás considera ser a essência de Deus, ao que ele responderá que a essência de Deus é a razão.

Da mesma forma que Platão, da mesma forma que Descartes, cada um à sua maneira. O universo é construído sobre a razão. Deus é um Deus de razão. O fato de que graças à razão se possa chegar a compreender as leis que regem o universo demonstra que a razão e o universo têm a mesma essência. E o fato de que os animais, não tendo razão, não possam compreender o universo, mas devem limitar-se a obedecer cegamente suas leis, demonstra que, diferentemente do homem, eles fazem parte dele mas não participam do seu ser: demonstra que o homem é como deus e os animais, como coisas.

Até Immanuel Kant, de quem eu esperava algo melhor, parece ter recuado nesse ponto. Até Kant não dá seguimento, no que se refere aos animais, às implicações de sua intuição segundo a qual a razão pode não ser o ser do universo mas, ao contrário, apenas o ser do cérebro humano.

“E esse, como vocês podem ver, é o meu dilema esta tarde. A razão e sete décadas de experiência de vida me dizem que a razão não é a essência do universo, nem a essência de Deus. Ao contrário, e de forma bem questionável, a razão parece ser a essência do pensamento humano; pior ainda, a essência de apenas uma tendência do pensamento humano. A razão é a essência de um certo domínio do pensamento humano. E se assim for, se é nisso que eu acredito, então por que devo me curvar à razão esta tarde, contentando-me em bordar o discurso dos velhos filósofos?

“Faço a pergunta e eu mesma respondo a vocês. Ou melhor, deixo que Pedro Rubro, o Pedro Rubro de Kafka, lhes responda. `Agora, eis-me aqui’, diz Pedro Rubro, `com meu smoking, gravata-borboleta e calça preta com um buraco no traseiro para meu rabo poder sair para fora (que mantenho virado para vocês não verem), agora que estou aqui, o que tenho de fazer? Será que de fato tenho escolha? Se não sujeitar meu discurso à razão, seja lá o que for a razão, o que me resta senão falar bobagens, me emocionar, derrubar o copo de água e fazer macaquices?’

“The Lives of Animals” ou “A Vida dos Animais”, do escritor sul-africano J.M. Coetzee, publicado pela editora da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, em 1999, e lançado no Brasil pela Companhia das Letras em 2003. A obra de caráter filosófico gira em torno dos conflitos vividos pela professora e conferencista vegetariana Elizabeth Costello que, ao advogar os direitos animais, encontra resistência no âmbito familiar e no trabalho.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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