Criar pássaros em gaiolas é crueldade

Uma reflexão a partir do livro “O jogo da amarelinha”, de Cortázar

No livro “O jogo da amarelinha”, de Julio Cortázar, há um momento em que Gekrepten chama a atenção do protagonista e anti-herói Horacio Oliveira para que ele escute como canta Cien Pesos, um pássaro engaiolado, e que, por não estar no mesmo lugar do prédio que eles, só pode ser ouvido.

“Devem estar trocando o alpiste dele, animalzinho de Deus – disse Gekrepten. É um jeito de agradecer…” A forma como ela romantiza a realidade de Cien Pesos, que desconhece outra realidade que não a da gaiola, é refutada por Oliveira, que antagoniza a normalização da condição imposta ao pássaro:

“Agradecer – repetiu Oliveira – Imagine só, agradecer a quem o engaiola.” A percepção do anti-herói em relação à condição do pássaro entra em conflito com a crença de que alimentar um animal que se quer manter engaiolado é um bem, se o próprio ato de alimentar o animal vincula-se a um interesse de posse, pouca mobilidade decorrente do espaço e disponibilidade forçada.

Afinal, o animal estar ali não é uma escolha. Ainda assim, quem o mantém na gaiola pode vê-lo quando quiser, e não de acordo com o interesse do próprio pássaro engaiolado, que não pode se afastar de nada que compõe essa realidade.

Ao pássaro não cabe escolha. Ser alimentado pode ser percebido também somente como uma manutenção do estado de mantê-lo constantemente ali para apreciação, o que não deixa de ser uma forma de instrumentalização dessa vida animal.

Se o animal não é alimentado, ele morre, e assim finda sua apreciação determinada pelo que é arbitrário, a posse. Portanto alimentá-lo é mantê-lo observável. Isso exemplifica também que nem toda apreciação é um bem, se o apreciar vincula-se ao ato de dominar, de impedir que o animal seja expressão de sua natureza.

E como afirmar que pássaros engaiolados, mesmo aqueles que não sobreviveriam na natureza silvestre, desejam a gaiola se é a gaiola que impõe um extremo limite que só chega ao fim com a morte?

Todos nós já ouvimos alguém dizer que pássaros engaiolados não viveriam fora da gaiola, um argumento muito usado por quem defende a criação de pássaros em gaiolas. Mas, ainda que um pássaro não sobrevivesse fora dela, isso o impede de querer não estar na gaiola? Ademais, santuários de pássaros também são uma realidade – assim como é possível não trazer animais ao mundo somente para que tenham vidas miseráveis.

Referência

CORTÁZAR, J. O jogo da amarelinha. P. 355. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. 592 p.

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Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

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