Poder público deve zelar pelo bem-estar dos animais em situação de abandono e maus-tratos

No último dia 8 foi comemorado o Dia Mundial dos Animais. Na data, dentre os comentários nas redes sociais pelo país afora muitos pediam reflexão sobre o modo como agimos e tratamos os animais, e tantos outros cobravam ações mais efetivas do poder público sobre a pauta.

Fato é que a proteção e o direito animal vêm ganhando mais espaço nos debates sociais, chegando ao parlamento municipal, estadual e federal, e mesmo ao mais alto degrau da esfera judicial brasileira que é o Supremo Tribunal Federal.

Volta e meia, nos deparamos com matérias jornalísticas em veículos de grande audiência, como o caso recente da cruel caça aos javalis no centro-oeste brasileiro e alguns meses atrás da corrida de galgos no sul do país, como também acaloradas audiências públicas em torno de temas como vaquejada, rodeio e o tratamento dos animais com leishmaniose.

São pautas provocadas pela atuação de grupos ativistas, juristas e organizações constituídas que vêm chamando a atenção para o modo como tratamos – ou deixamos de tratar – os animais não humanos, onde o poder público não escapa de críticas e cobranças quanto ao tema, seja em decorrência de sua omissão, seja pela ausência de políticas consistentes que atendam aos direitos de outras espécies.

A responsabilidade do Estado em tutelar os animais vítimas de maus-tratos, tráfico e abandono, como ditado pela Constituição Federal(*), tem sido uma destas pautas periódicas entre os grupos que advogam pela causa já que este papel, em quase sua totalidade, vem sendo desempenhado no país pelo terceiro setor, por meio da atuação das ONGs, associações e cidadãos voluntários que, basicamente, mantêm os animais depois de resgatados com recursos próprios ou doações – também por meio de campanhas na internet.

(*) Art. 225. § 1º (…) incumbe ao Poder Público:

VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade. (grifo nosso)

Personalidades conhecidas como a ativista e apresentadora Luísa Mell ou o policial civil e hoje vereador de São Paulo, Felipe Becari, são dois exemplos disso, já que sempre pedem a ajuda de seus seguidores e simpatizantes para continuarem o trabalho que realizam quanto ao resgate e tutela de animais abandonados e submetidos a outras crueldades.

Luísa, por meio de seu Instituto, em 2019, foi fundamental na operação realizada em Piedade (SP), quando a Polícia Militar Ambiental realizou uma operação contra um canil de criação da região acusado de irregularidades e práticas de maus-tratos contra 1.707 cães. Esta operação, na época, anunciada pela própria ativista como a maior já realizada no mundo apreendeu os animais deste canil – o grande “fornecedor” da rede PETZ que, após o escândalo, anunciou que não venderia mais cães em suas lojas – com a ajuda de protetores locais e do instituto Luísa Mell – que sozinho tutelou 1.500 animais.

Na ocasião, após sofrer ameaças, a ativista publicou uma nota de repúdio esclarecendo que não havia sido sua ONG a denunciante do canil e que seu envolvimento no caso se deu apenas quando recebeu uma ligação da própria Polícia Ambiental Militar para que pudesse ajudar na retirada dos animais do local, uma vez que a força policial não tinha para onde levá-los. Por meio de suas redes sociais a apresentadora ainda fez questão de agradecer aos apoiadores e parceiros como as empresas Viação Cometa e ClickBus e a plataforma de hospedagem DogHero pelo suporte durante a operação, já que precisou alugar dois galpões em Mairiporã para abrigar e cuidar dos cães.

Até então, toda a tutela destes animais do canil, assim como os custos teriam ficado a cargo dos voluntários, de doações e instituições privadas não havendo no processo envolvimento do município onde o canil exercia sua atividade.

Por situações como esta do canil de Piedade (SP), a VEGAZETA resolveu conversar com especialistas e autoridades na busca de possíveis resoluções ou, mesmo ações em curso que estejam buscando resolver o gargalo que se criou, em torno do tema, já que a demanda tem sido cada vez maior não só em função da Lei Sansão que aumentou a pena para crimes cometidos contra cães e gatos deixando-os fora da condição de crimes de menor potencial ofensivo, como também pelo número cada vez mais frequente de denúncias e ações registradas pela população contra maus-tratos e abandono de outras espécies, o que têm exigido a atuação das autoridades e do estado como nunca antes.

O que o poder público tem feito com relação aos animais silvestres e domésticos, neste sentido?

Para a promotora de justiça do Ministério Público de Minas Gerais, Monique Mosca, o primeiro ponto é distinguir a questão dos animais silvestres dos animais domésticos.

De acordo com a promotora, em relação aos animais silvestres, pelo menos o estado de Minas Gerais tem cumprido seu dever, uma vez que por meio dos espaços de acolhimento conhecidos como Cetas, que integram a estrutura estatal, estes animais apreendidos em casos de maus-tratos ou de tráfico e cativeiro ilegal, em geral, têm sido acolhidos. Neste caso, por vezes, o que o Ministério Público tem precisado atuar é no combate a situações em que o animal chega a ficar com o próprio agressor, após a operação. Isso não é incomum, por exemplo, nas ocorrências que envolvem aves silvestres, onde há ocasiões em que a autoridade policial faz o TCO, mas acaba deixando o animal no local em vez de encaminhar ao Cetas. Por esta razão, o MPMG chegou, inclusive, a encaminhar uma recomendação aos órgãos de fiscalização e controle para que todo e, em qualquer evento, o animal retirado daquela situação seja encaminhado para as estruturas devidas de acolhimento (Cetas).

A também promotora de justiça Luciana Imaculada de Paula, responsável pela Coordenadoria Estadual de Defesa da Fauna (Cedef) do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) ratifica sobre a situação dos animais silvestres de que o MPMG vem trabalhando, junto aos municípios, para que haja pelo menos um Cetas em cada região do estado, conseguindo desta maneira não só atender e absorver a demanda dos maus-tratos e tráfico, mas também trabalhando na reabilitação e soltura destes animais ao meio ambiente de forma segura e eficaz.

Agora com relação aos animais domésticos, as promotoras ratificam o desafio e as dificuldades. Imaculada chama a atenção para o fato de não existir ainda em Minas Gerais uma decisão pública e estadual de criar e estruturar locais de acolhimento a estes animais levando o Ministério Público, junto à municipalidade, a buscar soluções locais já que, de fato, a questão de animais em área urbana traz a responsabilidade primária do município.

Monique reforça a questão chamando a atenção também para o fato de que os municípios que já possuem algum abrigo público ou convênio com uma ONG, por falta de recurso ainda não conseguem manter um padrão de bem-estar para o acolhimento adequado desses animais. “Então o que a gente vive no geral é uma situação inadequada. Muito dos municípios sequer tem uma estrutura, e aí é um problema sério. A Polícia Militar, por exemplo, vai atender uma ocorrência de maus-tratos, apreende o animal e não tem o que fazer. Então acaba havendo uma atuação amadora. Por vezes, quando tem um contato de alguma ONG ou de algum protetor independente, a força policial faz o contato na hora pedindo socorro para que alguém acolha aquele animal (vítima), e isso não é o adequado. Então, hoje, o Ministério Público tem buscado trabalhar com os municípios para fazer parcerias não só com instituições, mas com a própria população por meio de reduções, concessão de benefícios sociais e isenções de IPTU – para quem acolhe animal vítima de maus-tratos ou para quem pode dar “lar temporário”. Isso é possível, mas, de fato, a realidade atual é que o poder público municipal não tem cumprido com o seu dever de tutelar adequadamente esses animais em situação de vulnerabilidade” explica a promotora, enfatizando que, inclusive, já existe decisões no Tribunal de Justiça (TJ) reconhecendo que este ponto se trata, efetivamente, de um dever do município. O Tribunal de Justiça do Maranhão, como exemplo, tem um caso de gatos que ficavam numa praça local em que o TJ determinou ao poder público não só que acolhesse esses animais, mas também que garantisse a eles o direito ao seu bem-estar.

Em Recife (PE) os desafios não parecem ser muito diferentes em relação à situação de animais domésticos que necessitam de tutela.  É o que garante a ativista há mais de 12 anos Goretti Queiroz, que é radialista e apresentadora do informativo de rádio local “Momento Animal”, criadora dos projetos SOS Cavalos e Fundação Dentinho – que ajuda animais especiais – e ex-vereadora da capital pernambucana.

“Aqui em Recife a causa animal vem lutando há muitos anos por políticas públicas. Desde 2010 que a gente vem nesta batalha. Conseguimos alguns avanços como, por exemplo, o hospital público veterinário do Recife que, ainda precisa de mudanças estruturais como o atendimento de 24h, pois temos muita dificuldade nos casos de atropelamentos, além da existência de deficiências em relação a especialidades. No momento estamos sem ortopedista, sem neurologista e por isso alguns exames específicos têm que ser feitos em clínicas particulares, conveniadas com o hospital, mas que, mesmo assim, para o tutor que não tem recursos ainda são exames caros. É uma luta para que o hospital seja mais efetivo na sua concepção de atendimento aos animais necessitados das famílias de baixa renda”, desabafa Goretti que cita ainda as dificuldades, em relação ao resgate de animais, já que a prefeitura do Recife também não tem abrigos públicos.

“Nós temos um centro de vigilância ambiental que faz este papel, embora, saibamos que seja voltado para questões de saúde pública – zoonoses -, não podendo usar recursos do SUS para atendimento de saúde destes animais.”  Ou seja, ainda que o órgão faça resgates, incluindo animais grande porte, e depois os coloque para adoção a ex-vereadora ratifica que este papel, de forma consistente e efetiva, realmente, tem ficado à cargo do terceiro setor, ou seja, de ONGs e protetores individuais que vivem uma luta incessante para angariar recursos e conseguir cuidar dos seus animais tutelados. “Esta é uma luta constante da proteção animal que acredito não ser apenas aqui do Recife, mas, de todo o país”, finaliza.

O delegado da Polícia Civil no Paraná e, chefe da Delegacia do Meio Ambiente (PR), Matheus Laiola que, por meio do registro pelas redes sociais do seu trabalho contra os crimes de maus-tratos tem conquistado cada vez mais admiradores – já que a atuação das forças policiais, neste contexto, é de extrema importância para garantir que o infrator possa vir a responder por seus crimes – também afirma que a maior dificuldade é com relação ao encaminhamento dos animais em situações vulneráveis. “A gente acredita que o poder público acaba absorvendo de 5 a 10% destes animais resgatados. O restante acaba sendo via sociedade civil organizada, via terceiro setor como ONGs e protetores”, constata Laiola que, todavia, chama atenção para uma iniciativa da prefeitura de sua cidade.

“Em Curitiba, há uma política pública muito interessante por parte da Secretaria Municipal do Meio Ambiente, mais especificamente o órgão chamado Rede de Proteção Animal da Prefeitura (RPA) que possui fiscais, veterinários e um trabalho de resgate diário de animais com ambulância veterinária de atendimento para o caso de atropelamento” explica o delegado. Mas, mesmo elucidando a inciativa da prefeitura como um modelo para o restante do país, Laiola enfatiza que esta parceria, logicamente, não dá conta de atender toda a demanda, que é muito grande, como acontece nos casos das ocorrências de maus-tratos que chegam para a polícia civil de sua região por meio da polícia militar e da guarda municipal local. “A sensação é de impotência em razão da gente não conseguir absorver os animais de instituições diversas”, lamenta.

Direitos fundamentais dos animais e o dever do estado

Monique Mosca explica que o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) tem atuado junto aos municípios, induzindo políticas públicas por ser esta uma função prevista na constituição do Ministério Público. Ela elucida o programa criado pela Cedef, coordenada pela promotora Luciana Imaculada, chamado Prodevida. Por meio deste programa, mais de uma centena de municípios já fizeram acordos com o MPMG, chamados de termo de compromisso positivo, se comprometendo a adotar uma política não apenas direcionada ao acolhimento de animais vítimas de maus-tratos ou em situação de abandono, mas que envolve vários pilares como a castração cirúrgica em massa, o registro de animais, programas de adoção responsável e também a educação animalista.

O grande desafio, entretanto, de acordo com Mosca é que os municípios executem estes acordos. “O que a gente verifica, pela experiência, é que simplesmente fazer um acordo e direcionar o município a criar uma estrutura para o acolhimento não tem sido a via mais adequada, porque os municípios não querem e, por vezes, nesta situação que a gente vive, ainda mais, agravada de crise econômica, acabam não conseguindo recursos econômicos para ter a estrutura adequada, de forma a garantir o bem-estar dos animais. Então o MP tem trabalhado com os municípios buscando que criem parcerias com o setor privado. Seja parcerias com ONGs e com a população, em geral, como eu disse. Existem instrumentos econômicos e tributários que são típicos para cumprir com esta finalidade. E esses instrumentos foram utilizados em países que tiveram sucesso em vencer este problema de animais em situação de rua e de vulnerabilidade. A Holanda, por exemplo, é o maior exemplo de um país em que não existe animais nas ruas. Como eles fizeram isso? Eles conseguiram alcançar este objetivo, primeiro, taxando a venda de animais domésticos de forma a desincentivar que as pessoas comprem animais e desincentivar a exploração econômica do comércio de animais domésticos de raça, direcionando, com isso, a população que deseja ter um animal de companhia para a adoção responsável.  E, segundo, através desses instrumentos econômicos estimulando também a população ao acolhimento de animais em situação de rua, através não só da educação animalista, mas, especialmente de incentivos tributários.”

Iniciativas do poder público com o terceiro setor

Luciana Imaculada entende que a tendência para a resolução quanto à obrigatoriedade do estado em tutelar e garantir o bem-estar dos animais seja a parceria do poder público com o terceiro setor – por meio de incentivos que permitam que as ONGs, associações, protetores e população, em geral, mantenham os animais em salvaguarda – o que corroboram os demais entrevistados.

“Eu defendo sim a participação da iniciativa pública e do terceiro setor. Isso já deveria ter se iniciado, pois é também uma grande discussão já que este é um papel do estado que tem ficado à cargo dos protetores e ativistas já exacerbados de tantos animais em risco”, defende Goretti.

Matheus Laiola também entende que a curto prazo, a melhor saída para se resolver este gargalo pelo poder público municipal e estadual seja, realmente, parcerias com o terceiro setor, junto a ONGs e aos protetores. Entretanto, a longo prazo, o delegado enfatiza que a castração seja o meio mais apto para diminuir a situação destes animais, assim como a educação, começando sobretudo pelas crianças, de modo a conscientizar a população sobre os animais não humanos serem tratados com a devida dignidade.

Monique Mosca faz uma observação quanto à experiência ter demonstrado que, de fato, há um sucesso mais efetivo e mais adequado ao interesse e bem-estar dos animais a parceria do estado com o setor privado, do que quando o poder público tem uma estrutura própria. Contudo, elucida também que as ONGs, associações e os protetores estão superlotados já não conseguindo, em muitos casos, acolher mais animais. Por essa razão, destaca que não basta apenas o poder público realizar tais parcerias, sem estabelecer instrumentos que impeçam que novos animais sejam abandonados. Para a promotora, o abandono é um problema clássico desta questão de maus-tratos, porque os animais que estão na rua não nasceram nas ruas, eles foram vítimas de tutores negligentes e irresponsáveis.

“Se a gente não tiver uma forma de coibir o abandono e, principalmente, fiscalizar e punir esta prática não adianta fazer castração em massa, por exemplo, porque à medida que as pessoas continuam abandonando, o problema continua crescendo, e o terceiro setor vai ter que aumentar a capacidade de acolhimento de forma constante, se tornando uma questão infinita. Neste sentido, esta parceria com entidades privadas e com a população, em geral, como mencionei através de instrumentos econômicos e tributários é adequada, mas ela tem que ser combinada com outros instrumentos, principalmente a educação, fiscalização e punição do abandono e dos maus-tratos”, finaliza.

O vereador de Belo Horizonte (MG), Wanderley Porto (Patriota) cujo mandato tem priorizado a pauta animal, reconhece que o poder público vem a reboque dessa mudança de paradigmas. Mas o parlamentar enfatiza também que algumas mudanças já podem ser percebidas, mesmo que, em um ritmo muito aquém do que se gostaria, sendo, portanto, mais uma voz favorável à parceria entre o poder público e o terceiro setor para resolver este gargalo que se criou em torno da tutela de animais em situação de vulnerabilidade.

“É evidente que somar forças é a forma mais efetiva de avançarmos. Para mim, não há dúvidas de que governos e instituições da sociedade civil, nos mais diversos âmbitos e, em particular, no que tange à causa animal, precisam andar juntos. E é basicamente sob três prismas, o do debate, o educativo e o da execução das políticas que essa parceria deve se dar. Belo Horizonte tem o privilégio de ter ativistas e protetores verdadeiramente comprometidos com a causa. Denúncias, resgates, adoções, muito tem sido feito por eles de forma muitas vezes anônima e, em geral, voluntária. E muito sofrimento e morte de animais têm sido evitados. Sou testemunha disso e entendo que reconhecer o trabalho, a representatividade e o conhecimento das entidades de proteção animal, mais que fazer justiça, é uma forma de fortalecer a causa e ampliar os resultados”, destaca o vereador que tem papel fundamental como legislador na construção e aprovação das políticas que possam garantir o bem-estar dos animais.

A regra é clara: cabe aos municípios brasileiros atuarem, efetivamente, na tutela e proteção dos animais em situação de rua e maus-tratos, cuja demanda cada vez mais crescente da sociedade aponta para medidas que envolvam diretamente o terceiro setor que, por sua vez, desenvolveu, por meio da militância, excelência necessária para desempenhar este papel. Instrumentos econômicos e tributários, fundos e ações conjuntas são caminhos viáveis e possíveis, e precisam ser realizados de forma urgente, já que os animais possuem direitos e merecem todo nosso respeito.

Daniela Sousa é responsável pela assessoria de comunicação do movimento Brasil Sem Tração Animal e Direito Animal Brasil (Dabra).

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