Como se alimentar de animais e ignorar tanto sofrimento?

Há um distanciamento do reconhecimento de que um animal não é um produto (Foto: Aitor Garmendia/Tras Los Muros)

Como se alimentar de animais e ignorar o seu sofrimento? Afinal, por que as pessoas se alimentam de animais mesmo quando reconhecem que estão se alimentando de partes de animais mortos? Vejo três aspectos relevantes para entender um pouco essa questão. O primeiro é um fator historicamente cultural, ou seja, o distanciamento do reconhecimento de que um animal não é um produto.

Isso foi reforçado a partir da Revolução Industrial no século 18, se estendendo em proporções aberrantes até os dias atuais. O vegetarianismo, ou melhor, o vegetarianismo ético, começou a ser formatado nos moldes atuais nesse período, o que pode ter sido uma reação a um novo nível de banalização da vida.

Muito tempo depois, na década de 1960, por exemplo, e no Brasil, não era incomum os criadores terem algum tipo de vínculo ou afinidade com os animais. Mas essa afinidade, mesmo quando culminava ou culmina na morte do animal reduzido a produto, era e é limitada; limitada por uma crença de que se você ver semelhanças entre você e um animal, você não é capaz de matá-lo. Talvez de mandar que alguém o mate, dependendo dos níveis de conexão e desconexão.

Afinidade limitada pela percepção de “produto”

Ainda assim, pode ser difícil você atentar contra a vida de um animal depois de reconhecer, talvez até mesmo por identificação, que ele é um ser de direitos com necessidades que pareçam similares às humanas, embora não signifique que sejam, até porque devemos considerar que cada animal tem a sua própria complexidade enquanto ser vivo senciente.

Porém, infelizmente, quanto mais animais são criados com fins de consumo, mais fácil se torna não encará-los como “sujeitos de uma vida”, termo cunhado pelo filósofo Tom Regan. Para que a morte deles continue sendo praticada e legitimada como socialmente aceitável é preciso que a desconexão seja predominante, e muitas vezes essa desconexão é baseada na ideia de que o animal está cumprindo o seu papel, que é servir como comida, logo há quem encare isso como um ato de nobreza, mesmo que mascarado por uma falsa premissa.

O quanto a vida de um animal é importante

Sem essa desconexão, se você se permitir entender o quanto a vida de um animal é importante para ele, assim como a sua é para você, as chances de matá-lo ou comê-lo diminuem. Qualquer pessoa que experimente não apenas o entendimento, mas a sensibilidade do que é a vida não humana, tem grandes chances de não querer mais tomar parte nessa desnecessária exploração animal.

O segundo aspecto que considero relevante é a dissimulação da informação. Conheço muitas pessoas de grande sensibilidade, mas que estão imersas no fator cultural da legitimação da exploração animal. Mas sei, baseado no que vejo, que muitas abdicarão disso no futuro. Porém, ainda não o fizeram porque têm dúvidas, inclusive medo, sobre as consequências dessa decisão.

Creio que aos poucos a realidade tende a ser mais auspiciosa, conforme mais e mais informações forem compartilhadas e os mitos derrubados. A única ferramenta para reverter isso é a conscientização, que varia de acordo com o emissor e seu nível de informação.

Receio em relação ao veganismo

É perceptível o receio das pessoas em tornarem-se veganas, um temor que desde a metade do século 20 é sustentado por muita propaganda que existe não exatamente para garantir o bem-estar da população, mas para manter o status quo das grandes indústrias que atuam no ramo da exploração animal. E qual é o maior exemplo da eficácia dessa propaganda? Quando se tornam parte do ensino.

Ou seja, invadem escolas e universidades como testemunhamos há muito tempo. O que as instituições de ensino repercutem, quando ajudam a reforçar a falsa necessidade da exploração animal, é uma versão supostamente educativa da publicidade e da propaganda que ganhou muita força no século 20. Compare a propaganda com a educação nesse aspecto da objetificação.

Para a indústria de produtos de origem animal, é preciso bombardear a população com informações diárias e constantes sobre a “importância” e os “prazeres” desse consumo. Sem propaganda, essa indústria não seria o que é.

O que a indústria tem a seu favor

Ela tem a seu favor o fato de que ainda podemos encontrar muita, muita gente mesmo que nunca viu um porco vivo à curta distância, assim como um boi ou qualquer outro animal reduzido a produto, o que pode dificultar o processo de empatia e reconhecimento de direitos não humanos.

Isso é mais comum do que podemos imaginar e facilita bastante a dissociação entre vida, morte e comida. É fácil encontrar pessoas no mercado que não sabem a origem do presunto, quero dizer, de qual animal é proveniente.

É mais uma prova do quanto estamos imersos em uma realidade preocupante, em que muitas vezes as pessoas não se importam com o que consomem e as implicações disso, seja para outros seres ou até mesmo para elas.

Não há questionamento sobre o que é

Por que isso acontece? Porque não há um questionamento contundente sobre esse tipo de consumo. Quando existe, se volta mais para a “qualidade do produto”, não para o que é.

O terceiro aspecto é o paladar, que também está relacionado com o aspecto cultural e a dissimulação da informação. As agências de publicidade conseguem despertar um anseio no espectador ao trabalhar imagens positivas, repletas de cores associadas ao prazer da alimentação baseada na exploração animal – o que pode ser interpretado como um efeito sinestésico.

Além disso, sempre apresentam animais como seres felizes e caricatos ao darem sua vida para alimentar seres humanos, se enquadrando no que chamo de “dissimulação estética”. Qual animal seria feliz em morrer para alimentar alguém? Nenhum, já que isso não acontece nem mesmo na savana, imagine então no contexto da indústria de carnes, laticínios e ovos, onde muitos animais são condicionados à exploração intensiva, logo privados de uma vida livre da má intervenção humana.

Paladar é um prazer sensorial que dita hábitos

É preciso considerar também que o paladar é um prazer sensorial que há muito tempo dita alguns hábitos da humanidade. Como lidar com o paladar quando falamos de exploração animal? Bom, o paladar só pode ser associado ao prazer se entendermos que o que estamos consumindo é plenamente satisfatório, sem levantar muitas dúvidas e questionamentos que coloquem esse hábito em xeque a ponto de propor real mudança.

Não há como algo ser satisfatório se a sua mente trabalha contra isso. Portanto, isso explica por que há veganos que têm esse prazer anulado ou neutralizado. Até porque pode se tornar difícil não ver os animais que deram vida àqueles “produtos” nas vitrines dos açougues e nas seções de frios, por exemplo. Claro que nem todos são assim. Há quem sinta falta de produtos de origem animal.

No entanto, com o passar do tempo esse anseio pode desaparecer e, quem sabe, até se extinguir. Ainda assim, é importante reconhecer que substituir o prazer da gustação, seja motivado por compaixão ou razão, é uma demonstração de que o paladar está abaixo de princípios mais importantes como a valorização da vida não humana. Afinal, você associa produtos de origem animal com as consequências negativas de sua produção – exploração, privação, sofrimento e morte.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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