Por que comemos criaturas de vontades?

Foto: Aitor Garmendia/Tras Los Muros

Não é difícil olhar para um animal e reconhecê-lo como criatura de vontades, porque seu corpo, suas manifestações e ações falam.

Mesmo quando reificados pelo sistema alimentar, pela sua corporalidade vinculada à proteína animal (carne, leite, ovos, etc), não deixam de ser criaturas que transmitem linguagem, que também é meio de comunicar senciência.

Quantos significados um animal é capaz de transmitir no decorrer de uma breve vida para ser um produto que gera produtos? Se reconhecemos impressões e insatisfações, há linguagem, mas mesmo quando não as reconhecemos a linguagem não deixa de existir.

Não digo que podemos reconhecer todas as vontades dos animais, que são expressadas por linguagem, mas o entendimento de que são concretas, em unidade ou pluralidade, já evoca ideia incontestável de que estamos diante de alguém.

No entanto a percepção do alguém também varia conforme contexto, e do que o alguém pode ser ou não ser. Por exemplo, um animal morto fora de um ambiente não institucionalizado, “não oficial”, gera repúdio inexistente em um cenário que existe para sua subjugação e/ou morte.

Ou seja, há locais em que o alguém pode deixar de ser alguém pela crença de que trata-se de espaço aceitável de destruição de sua condição física, de sua expressão corporal viva. É como dizer que há ambientes ideais, excelentes para arrancar-lhe a vida do corpo.

Ademais, mesmo no ambiente “não institucionalizado” o repúdio pode não ter relação com a ideia do “alguém”, e sim do “que” – se a rejeição ao ato associa-se ao posterior à ação, que não evoca o animal, mas o reduzir e o imposto fragmentar-se de sua matéria que leva ao incômodo em relação ao “produto resultante”.

Ou pode ser expressão de desconforto em relação não à situação do animal, já desanimalizado pela violência inerente, e sim do testemunho de sua não condição, em um ambiente que considere inadequado, não sanitizado.

Em todos esses exemplos há irreconhecimento e representações endossados não pela realidade, mas pela ideia de realidade e factibilidade adotadas em atribuições arbitrárias que transitam entre o que entendemos e defendemos como “aceitável” e “inaceitável”.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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