Por que comer alguém que chamam de algo?

Não são criaturas de vontades?” (Fotos: Aitor Garmendia/Pixabay)

Observou a fila do açougue e sentiu desgosto. Voltando para casa, sentiu cheiro de churrasco. Desgosto de novo. Por onde passava, o prazer pela carne tornou-se incômodo constante.

Quanto mais desejava não encontrá-la, mais se multiplicava. Teve vontade de reunir todos aqueles pedaços e enterrá-los. Mas precisaria de um buraco tão grande ou tantos buracos que nem imaginaria onde poderia fazê-los.

Percepção da carne mudou sem esforço, sem iniciativa externa. Não sabe dizer como aconteceu. E o que isso importa? “Partes de corpos sem vida devem se enterrados. Por que comer alguém que chamam de algo? Não são criaturas de vontades?”

Saiu de novo para ir ao mercado e viu movimentação em uma boutique de carnes no bairro vizinho. “Rica variedade gourmet”, leu. “Estranho como atribuímos distinção a um pedaço de carcaça usurpado pela mesma e inerente violência.”

Lembrou de um conhecido que disse que carne gourmet faz parecer não apenas “belo corte, mas ainda bela morte.” “Como isso pode fazer sentido? E pra muita gente faz, por mais desconectado que seja da realidade.”

É como se morrer fosse um prazer – pela “valorização da carcaça”, “pela superioridade comestível da raça”. Quantas estranhezas imperceptíveis ao conforto. E a ideia da carne sem dor, enfim, era-lhe absurda e trágica.

“Em algum momento, que também pode ser um acúmulo de momentos, há dor, mesmo quando ninguém está olhando ou dissimulando, e talvez, ou não talvez, principalmente. A dor também pode existir o tempo todo, manifestar-se ou não e ser manipulada, condicionada. Mas só a capacidade de tê-la e não reconhecê-la já revela a indignidade de desmerecê-la.”

Retornando de novo para casa, viu a cabeça de um boi enfeitando a entrada de outro açougue. Foi exposta como se fosse a cabeça de um animal caçado – parecia coisa importada. Também quis derrubá-la e enterrá-la, mas limitou-se a observar por instante a fila de consumidores.

“As pessoas alimentam-se de carne, mas não tanto quanto alimentam-se de ilusão. Afinal, o que seria do consumo de carne sem esta?”

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Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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