Por que deixar de consumir carne, mas não outros alimentos de origem animal?

Foto: Ari Solomon

Por que muitas pessoas que deixam de consumir carne justificando ser contra o abate de animais não abdicam do consumo de outros alimentos de origem animal? Algumas pessoas podem alegar intenção ao mesmo tempo em que alegam dificuldade em deixar de consumir outros alimentos. É perceptível que há uma comum associação da carne com o corpo de um animal, com a sua morte. Afinal, é latente a ideia de que consumi-la é consumir um pedaço de uma criatura que morreu para tal fim.

Então a ideia da carne como “somente carne”, como um produto sem gênese, é substituída pela carne como parte de um corpo. Pode-se pensar especificamente de qual parte do corpo foi removida a carne diante de nós, reforçando ideia de violação e violência contra um corpo não humano. Constrói-se com mais facilidade também o imaginário da dor e da privação de um animal em relação ao seu corpo e o que significa a disponibilidade de fragmentos corporais dispostos para venda/consumo.

Podemos dizer que a vaca (fonte de leite) e a galinha (fonte de ovo) também são abatidas – mais cedo, mais tarde e por fatores diversos – e isso pode não motivar uma pessoa a deixar de consumir laticínios e ovos, mesmo que existam dois processos de violação, pela vida e pela morte, já que a exploração tem fator de duplicidade e é persecutória – leite/carne, ovo/carne.

Então por que nem todos que reconhecem essa realidade, e não comem carne, abdicam desse consumo? Porque independente da institucionalização dessa violência em relação a outros alimentos de origem animal, a ideia de consumir parte de um corpo ainda tem um apelo maior pela ideia da ingestão da fisicalidade não humana, de partes entendidas como “concretas de não vidas”.

Ninguém pode dissociar a carne da morte, mas pode dissimular sobre a associação da morte com o que se consome que não é morte. Claro que o consumo de leite e de ovo, por exemplo, resulta de processos de exploração animal que culminam em morte, já que animais são criados para gerar lucro e mais tarde descartados e substituídos por animais mais jovens, mais saudáveis e mais produtivos.

No entanto, ainda que a morte seja consequência comum de todo o sistema de produção de proteína animal, indo muito além da carne, a ideia de “não consumo direto de morte”, evocada por produtos que não são cárneos, facilita uma continuidade desse hábito se quem o mantém, e que não come carne por ser contra o abate de animais, define o que consome apenas como “algo que é extraído de um animal ou expelido por ele”, como se isso fosse um processo “natural”. Então o leite leva à imagem do líquido branco extraído de tetas e o ovo é visto como apenas um “produto da bota da galinha”.

Pode não ser determinante para quem é resistente se isso envolve modificação genética para eficiência produtiva, desenvolvimento precoce de enfermidades e doenças, uso de antibióticos como recurso de prevenção/desenvolvimento, decréscimo de expectativa de vida, assim como as condições em que esses animais vivem.

Se essa desimportância não cessa é porque insiste-se na crença de que o consumo deve ser validado independente das consequências. Afinal, quando comunicamos que não somos capazes de mudar um hábito porque nossa “predileção de consumo é persistente”, como se fosse uma vontade que sobressai-se a nós como um “ser autônomo”, a mensagem que transmitimos é que “as consequências não justificam seu fim.”

Ou seja, predomina uma ideia de “não morte”, não porque não seja fator consequencial, mas porque prende-se a uma percepção objetivamente conveniente/continuísta de consumo. Assim insiste-se no crer que leite, ovos e derivados não podem ser vistos como morte porque não são pedaços de um animal, “não são corpos mortos que coloco dentro de mim”, ainda que sejam corpos mortos que estarão dentro de alguém, por usual consequência.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

Uma resposta

  1. João Soares de Melo, parabéns, a sua observação foi oportunamente necessário: o Mestre dos mestres ARIANO SUASSUNA, numa das suas aulas espetacular, ele disse: a língua portuguesa (nosso idioma) é a mais linda de todas e tem uma sonoridade incomparável, concordo plenamente, não temos o direito de modificar o lindo!.

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