Realidade cruel: Homem desiste da profissão de matar boi

“Tive ânsia de vomito nos primeiros dias. Não sei se era pelo que via ou sentia” (Fotos: EOA)

Cícero dos Santos, 42 anos, trabalhou por dois anos e meio matando boi em Maringá (PR). Segundo ele, “não era um serviço como qualquer outro”.

Seu irmão já atuava na área e, embora degolar animais não soasse agradável, foi em um matadouro que “conseguiu uma colocação” depois de dois anos desempregado.

“Tinha esposa e duas filhas, e uma ideia de como eram as coisas por lá.” Cícero já havia trabalhado em açougue, mas a diferença é que no matadouro os golpes não eram contra algo já sem vida – como pedaços de carne descaracterizados de identidade.

Cheiro de sangue

“Tive ânsia de vômito nos primeiros dias. Não sei se era pelo que via ou sentia. Pensando bem, acho que o cheiro de sangue incomodava mais. No comecinho, ver também, mas o cheiro parece que fica impregnado no nariz da gente”, relata.

E acrescenta: “Mesmo depois do banho, acontecia de continuar sentindo o cheiro, como se estivesse no corpo. Um colega disse que era normal, mas que era coisa da nossa mente.”

Cícero descobriu que era verdade quando o cheiro do sangue resultante da degola de bois já não o acompanhava fora do matadouro. “Falaram que isso acontece quando a gente deixa de estranhar o serviço.”

Ele diz que no matadouro, mais cedo ou mais tarde, as pessoas se acostumam com o trabalho, mas não muito ou completamente. “Nunca conheci ninguém que se sentia feliz em matar os bichos. Pode haver uma realidade diferente em outros matadouros, não sei.”

Quando o abate fica mais violento

Por outro lado, não nega que testemunhou episódios em que algum magarefe muito estressado ou incomodado com problemas pessoais descontava suas insatisfações nos animais, que sem muita dificuldade têm suas queixas não verbalizadas dissimuladas.

“Quando o sujeito tá irritado, o abate fica mais violento e parece que o bicho sofre mais ainda.” Exemplo dessa revelação são situações em que mesmo experientes, os funcionários atiram duas ou mais vezes contra a cabeça de um mesmo bovino até atingirem o chamado “ponto de insensibilização”, que visa inutilizar o cérebro do animal.

“O animal agoniza, berra, tenta fugir. A situação não melhora quando enviam pra gente degolar um bicho que você vê que está sentindo dor. Acho que todos sentem dor, mas sempre tem aqueles que demonstram mais.”

Não olhe nos olhos

Cícero lembra de um senhor que estava perto de se aposentar, e que era o funcionário mais antigo do matadouro. Ele falava que “pra durar no serviço a única dica é não olhar nos olhos”.

“Fiz isso. Na hora da degola, mantinha os olhos fixos no pescoço do boi. Evitava olhar também pra cabeça porque deixava a coisa mais fácil.”

A sugestão deu certo por mais de dois anos, até que um dia um boi se debateu tanto na etapa de degola que caiu no chão. Com a força do impacto, já que era um animal muito pesado, teve a mandíbula destruída e morreu engasgado com o próprio sangue. “Com certeza, ele estava consciente”, frisa.

No mesmo mês, o senhor que sugeriu o “não olhar nos olhos” disse algo que Cícero nunca esqueceu: “A gente faz o que acha que pode pra sobreviver, mas a que preço, né?”

O bezerro e o viveiro

Menos de dois meses depois, Cícero voltava para casa pela PR-323 quando encontrou um animal caído, mas com vida. Encostou a moto, aproximou-se e viu que era um bezerro ferido e respirando com dificuldade.

Tirou o animal da rodovia e tentou acalmá-lo. “Ele tremia e o coração parecia que iria explodir de tão rápido que batia.” Mas o coração do bezerro foi desacelerando. “Ele me olhava nos olhos e comecei a sentir culpa, até que morreu.”

Cícero cavou um buraco usando um galho grosso e as mãos. Como havia chovido pela manhã, isso facilitou o trabalho. Depois de enterrar o bezerro, observou a terra ainda fofa. Lembrou dos olhos daquele animal que, assim como muitos outros, morrem aos montes em mãos humanas: “Senti uma tristeza que nunca tinha sentido no matadouro. Eu matava animais como ele.”

Pediu demissão no dia seguinte e passou mais de seis meses vendendo água mineral nos semáforos, até que um motorista o reconheceu. “Foi você que há alguns meses recolheu um bezerro caído na 323?” Ele respondeu que sim, mas não imaginava que alguém soubesse disso.

“Olhe, não sei como é sua situação hoje, só que deve ser difícil sobreviver desse jeito. Se quiser uma oportunidade, apareça neste endereço aqui amanhã às 8h”, disse o motorista, entregando um cartão. Há três anos, Cícero trabalha em um viveiro de mudas. “Muito melhor plantar do que matar, né?”, comenta.

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Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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