Quantas famílias estão à venda no açougue?

É intrigante como um açougue é um lugar com uma transitória e tétrica coleção de quebra-cabeças (Fotos: iStock/Pixabay)

Perto do balcão do açougue, tento imaginar a quantidade de famílias desfeitas e mortas – em partes na vitrine, penduradas e em bandejas, nas mãos dos açougueiros, nas sacolinhas (faz parecer eufemístico, né?) recém-entregues.

Números apenas giram e giram. Pode-se juntar partes mentalmente e formar possibilidades bem realistas, com base em volumes, tamanhos, formatos e disposições ao nosso alcance.

É intrigante como um açougue é um lugar com uma transitória e tétrica coleção de quebra-cabeças. Algumas peças arrancadas de animais com dois anos e meio, cinco meses, quarenta dias, depende de onde veio e para onde vai.

Mas ali ninguém quer juntar partes ou qualquer coisa que seja – nem imaginar o que a junção pode resultar. O objetivo é separar ainda mais o que já foi separado pela tradicional violência precedente. Do matadouro, saem partes grandes, que ainda remetem a criaturas há pouco vivas.

No açougue, a descaracterização é um alento adicional à desconexão. Frango é exceção, mas sem cabeça, quem se importa? Mesmo “inteiro”, não está te olhando nem seus pés te tocando.

Alguém pede linguiça toscana e uma peça de bacon – perna e barriga de porco. Quantos passos livres será que ele deu? Quem deixou? Acho que não deixou. Será que sentiu friozinho na barriga? Pancada na barriga? Hum…

De repente, uma grande peça retirada de trás do pescoço de um boi é fatiada para diversos clientes. Cada um quer “sua parte” do cupim, sem a permissão do animal, claro, que já não pode reclamar de tal violação, assim como nunca pôde.

Na “região do cupim”, os zebuínos têm grande sensibilidade às reações do ambiente – como uma brisa que toca como um afago suave ou pequenas folhas que caem como se serrassem o ar.

Mas o que se vê no açougue é apenas um pedaço de carne, logo preparado, comido e esquecido. Mais poético, não? Quem imagina que chegou ali depois de uma decapitação?

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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