Quantos animais desceram pela sua garganta?

Pintura: Cemitério, de Anastasia

Apoia os braços sobre a mesa e pensa nos animais que comeu. Imagina multidão, tantos olhos fixos, de diferentes tamanhos e formatos. “Nunca que caberia na cozinha. É muito bicho.” Uma vida é suficiente pra comer milhares, de diversas, tantas espécies.” Frango e peixe morrem mais – mais volume, mais quantidade.

“Mas e boi, porco e outros que nem lembro direito? Tem coisa que você come pela experiência.” Se fosse para pedir desculpa por tantas mortes, acha que não funcionaria, porque tem dificuldade em imaginar tantas faces. Defende que seria inadequado conceber pequena porção de expressões para transmitir pesar.

“E se uma criatura evoluída de outra espécie comesse minha carne sem conhecer meu rosto e mais tarde usasse outro ser humano como referência de pesar? Uma face genérica…é estranho como pra nós é como se todos os animais criados para consumo fossem visualmente indistinguíveis. Acho que no respeito também há desrespeito…por mais simbólica e sincera que seja a intenção…”

É apenas tradicional exercício de dissociação. As imagens na cozinha começam a se embaralhar. Animais vivos em silêncio viram pedaços de carne com olhos, que se movem no desajeito, assíncronos. Foi assim que os conheceu, e acha mais adequado vê-los de tal forma.

Cachorro que o assistia todo dia cortando pedaço de bife também está ali. “Esse eu não comi, mas entendi.” Lembra de um cemitério antigo de cães e gatos atropelados na rodovia. “Pelo menos 150, diziam, se não me engano. Acho que é o tanto de bicho que já comi em um ano. Ou será que foi mais?”

Por que não? Frango é animal pequeno, assim como muitos peixes, e quando não se come animais inteiros o interesse por uma parte específica já é assomo e justificativa para um abate – é o coletivismo da violência. “Com a vontade de quantos consumidores se pendura um porco para degola?”, questiona.

No banheiro, depois de escovar os dentes, abre bem a boca diante do espelho. “Quantas criaturas passaram por aqui? O organismo humano é um estranho sumidouro de animais.” Imagina como seria descer pela própria garganta antes de apagar a luz.

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Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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