Ser chamado de porco não é ofensa

Uma reflexão a partir do filme “Folhas de Outono”, de Aki Kaurismäki

Em filmes é muito comum encontrar alguém tentando fazer uma referência negativa a alguém chamando-o de porco.

É raro encontrar algum personagem afirmando que não há nada de errado em ser chamado de porco, assim corrigindo o erro que existe em entender que ser porco é uma ofensa. Afinal, o que pode haver de ofensivo em ser comparado a um porco?

No filme “Folhas de Outono”, do finlandês Aki Kaurismäki, Ansa (Alma Pöysti) corrige a amiga Liisa (Nuppu Koivu), quando, em uma conversa sobre decepção com homens, ela diz: “São todos uns porcos!”

Ansa replica: “Não são, não! Porcos são inteligentes e compreensivos.” Liisa então reflete sobre o que a amiga diz e reage: “Tem razão! Um brinde a eles.” E elas brindam aos porcos.

É mais comum não haver esse tipo de contestação nos filmes, mas é o que ocorre em “Folhas de Outono”. A percepção de Ansa entra em conflito com a veracidade que não existe na comum referência feita aos porcos em tantos lugares, todos os dias e o tempo todo.

Ansa, nessa reprovação, recupera a realidade que é falseada para caber na lógica humana de uso do não humano com sentido pejorativo.

Quem é o porco senão um animal a quem todo o sentido negativo atribuído a ele carece de real sentido? No momento em que Liisa reconhece verdade no que Ansa diz, ela entende o equívoco normalizado sobre o porco.

Isso ocorre pela reprodução continuada e inconteste, em que se toma por conveniência a inverdade como verdade. Isso tem estreita relação também com o lugar do não humano como “animal em consideração”.

A posição de Ansa também questiona o espectador que tinha ou tem a mesma impressão manifestada por Liisa sobre os porcos, porque invalida o costume.

Porém podemos ir além e refletir sobre como esse uso ganha significação pelas ficções que o especismo é capaz de criar, moldar e perpetuar na ausência de uma transformadora reprovação.

Basta compararmos, por exemplo, com o sentido de humano como nunca sendo algo negativo, quando referenciado de forma adjetivada, mesmo que seja impossível dizer que ser humano não seja também ter, pela complexidade que é ser humano, atitudes na contramão do que é positivo.

O filme está disponível no Mubi.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

Uma resposta

  1. Acho interessante refletir sobre esse aspecto da linguagem humana quando inserida nesse contexto de adjetivação pejorativa da animalidade. E os porcos são, de longe, os mais ilustrativos.
    Veja como nossa linguagem está sutilmente permeada e contaminada de especismo. Mas acredito que não poderia ser diferente, já que é por meio da linguagem que se molda o imaginário sociopolítico e econômico, é ela a argamassa de cada construção cultural.
    É curioso como a sociedade inglesa (ou britânica) simboliza negativamente a imagem do porco. Veja o exemplo de “Animal Farm”, do George Orwell, ou “O senhor das moscas”, do William Golding. Ou aquele episódio da 1ª temporada de Black Mirror, em que um político do alto escalão do governo é obrigado a manter ter relações sexuais com uma porca, tudo isso televisionado em rede nacional como uma chantagem política (inclusive fica a dica para uma reflexão aqui sobre isso na categoria Cinema e aTV).
    É algo que transcende as fronteiras e épocas.
    Aqui no Brasil, no linguajar periférico e musical do rap, por exemplo, não se usa “porcos” para se referirem aos policiais, ou seja, aos inimigos (Racionais, Facção Central)?
    Desde quando despertei para a causa animal através do veganismo, tenho me atentado a cada detalhe, por mais sutil que seja, do uso da linguagem como adjetivação pejorativa da animalidade não humana.
    Dia desses estava na copa da empresa almoçando, e um dos colaboradores comentou com outro que tal ingrediente ficaria ótimo com aquele “porquinho” que ele estava prestes a comer no almoço. Perceba a sutileza na linguagem quando se trata de uma satisfação sensorial: o mesmo animal usado como símbolo de imundície e bestialidade, agora ganha um aspecto diminutivo, agora é um só um “porquinho”, no entender dele.
    Estava assistindo a um filme ou série, não lembro, mas lembro que uma das personagens disse a palavra “bitch” e a tradutora da legenda achou que “vaca” seria a palavra mais apropriada. Cara, com tantos adjetivos, por que ela escolheu logo “vaca”? Poderia ter usado vadia, vagabunda, piriguete, sei lá.
    É aí que você compreende como o especismo vai sendo inoculado na mente das pessoas, da maneira sutil e quase despedida.

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