Sobre meninos e animais

Foto: iStock

Uma vez por semana alguns pequenos gaiatos invadiam a propriedade do Velho Barbanço e davam estilingadas em porco, boi, vaca, cabra, galinha, ovelha e cordeiros que circulavam livremente. A visão do velho não era atilada – a audição sim. Crentes de que jamais aquele homem de idade avançada os surpreenderia, os petizes aproveitavam – gargalhavam, penduravam sobre a mangueira e estercavam perto do comedouro dos animais.

Barbanço apenas aguardou, na sua característica odara. As horas não diziam nada, porque os meninos nunca invadiam o local no mesmo horário. Mas o velho descobriu uma forma de surpreendê-los. Instalou um fio sob a terra que começava na porteira e percorria a mangueira frontal. Se alguém se aproximasse, um sino era acionado na sala, e quem estava fora nada ouvia.

Um dia os moleques pularam mangueira adentro e observaram o entorno, se asseverando de que não havia ninguém por perto. Então prepararam as primeiras estilingadas.

— Estilingue poderia ser uma coisa boa se não a usassem para o mal — disse uma voz roufenha sobre eles.

Os quatro espaventados observaram o Velho Barbanço sentado sobre um dos galhos mais massudos de uma sibipiruna. Não imaginaram que um dia seriam flagrados. Para a surpresa da molecada, o velho saltou da árvore e seus pés tocaram o chão com firme sutileza.

— Por que vocês incomodam esses pobres animais? Por que feri-los? Por que tirar-lhes a paz, que é uma das poucas coisas que buscam em suas vidas? Eles vivem bem menos do que nós, e não merecem tal maldade. Agora venham.

Hesitaram, se entreolharam, mas o seguiram. Barbanço mostrou os curativos que fez em cada um dos animais feridos. Um deles ainda gemia expectando convalescença.

— Eles sangram e sentem dor como eu e você. Imagine se fosse cada um de vocês no lugar deles. Agradaria?

— Não…— responderam juntos.

— Podem não parecer tão inteligentes ou sábios pra vocês, mas eles são sim. Sabe por que sei disso? Porque eles buscam mais a paz do que nós. Sabem o que um animal desses faz quando ninguém o machuca? Ele é condescendente, leniente. Entendem o que isso significa? Que ele não conhece o mal como nós conhecemos, não é da sua natureza. Até quando fazem algo de errado, não o fazem por pura maldade, mas por alguma motivação quase sempre alheia à nossa compreensão.

— Hum…mas o senhor come os bichos, né?

— Na realidade, não, filho.

— Como não?

— Que sentido teria eu livrá-los da dor que vocês causam a eles e entregá-los ao açougueiro? Isso seria muito pior do que o que vocês fizeram. Não se abraça mirando carcaça.

— Ah! Isso é estranho. Nunca conheci quem não comesse carne.

— Pois então está conhecendo agora.

— Isso é diferente.

— É uma reação comum.

— Hum…

— Acredito que quando temos alguma responsabilidade sobre a morte de alguém, mas não nos importamos, estamos mandando uma mensagem de que nem todas as vidas são importantes, e que podemos chegar ao extremo de escolher quem merece viver e quem merece morrer.

— Mas não é isso que já fazemos hoje? — questionou um petiz.

— Sim, e isso te agrada?

— Agora não.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *