Tem sangue no ovo

Pintura/Ilustração: Avi Nahum/Jane Lewis

Pediu café e alguém ao seu lado pediu um sanduíche com ovos. Havia uma parede de vidro que permitia ver o preparo. Tentou imaginar quantos ovos eram servidos ali em um dia. “E nos outros lugares? Não poucos, é o que posso dizer.”

A clara descia com sua espessa transparência, e logo a gema e um resto de clara. “Por que as pessoas comem o resultado da ovulação da galinha? A clara só existe por inerência biológica, que é proteger o óvulo de uma ave. E esse ritmo de produção que atende à demanda humana não é natural, já que depende da manipulação e domínio do ciclo reprodutivo das galinhas. É apenas a humanidade exercendo mais um poder arbitrário sobre a intimidade alheia.”

Enquanto o jovem ao seu lado no balcão comia o sanduíche, imaginou milhões de galinhas em gaiolas de bateria vivendo para que o que sai de seus corpos seja ingerido por animais de outra espécie.

“Humanos são criaturas de hábitos estranhos. Sempre cheios de apetite por algo que, se não fecundado, é comido, se sim, sai um pinto que, dependendo do sexo, será descartado. Ou, se criado para corte, crescerá e também será comido em 45 dias.”

De repente, recordou seu primo que ficou enojado quando viu sangue no ovo. “Mas você acha que ovos vêm de onde e como resultado de que tipo de ação? É algo que sai de dentro dum animal e como parte do seu ciclo de vida que envolve sangue. Tudo que a humanidade come que venha de animais é parte de seus ciclos – até o momento em que o produto então é o fim de suas vidas.”

O rapaz fez expressão de desgosto e pegou outro ovo. “Coloque um ovo para fecundar e verá o que acontece. Toda surpresa em relação aos ovos é desnecessária quando se conhece a realidade.”

De volta ao balcão, viu mais ovos sendo preparados, pagou pelo café e ficou alguns minutos lá fora. Um caminhão estacionou no pátio e ele perguntou ao motorista o que havia ali.

“Galinha pra abate, carne mais ou menos.” Volteou o veículo, observando o silêncio e o encolhimento das aves – pareciam exaustas. “Pois é, e acham que o preço do ovo está lá dentro”, disse olhando para uma galinha que não se mexia.

 
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Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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