Tem vaca prenha no matadouro

Foto: ASB

Testemunhou o abate duma vaca leiteira prenha que teve o feto arrancado do útero. Já era criatura bem formada tirada de dentro do animal rasgado com faca longa após tiro no crânio e sangria.

Aquilo incomodou tanto que desejou que virasse alucinação. Mas não, era realidade bem clara e ordinária. Com problemas nas articulações a vaca caminhava fragilizada e encolhia-se na tentativa de proteger quem não nasceu e não nasceria.

Sua sensibilidade tinha ganhado mais intensidade, suas emoções conflitavam e suas dores se multiplicavam. Ser tocada era como ser violada, denunciava sua rejeição que também era combinação de traumas.

Depois de resistir a chegar ao box, encolheu-se num canto e foi puxada para que a pistola alcançasse o crânio. O primeiro disparo não funcionou e deram mais um. Enquanto gemia e fazia esforço para não cair, tentou recuar até a parede do fundo, mas caiu de lado – sem forças e com patas sobrepostas.

Naquele instante ouviu gemido tão doloroso. Espuma grossa formou-se na boca e foi arrastada e pendurada. Imaginou uma mulher grávida de ponta-cabeça. “O que diriam?” Conforme o sangue da vaca descia e a morte acontecia, uma manifestação de vida era percebida – não dela que se foi.

Daquele corpo ainda quente removeram o feto que tentou inflar os pulmões e respirar. Mas assim que chegou ao mundo foi recebido com dois golpes na cabeça e morreu. Disseram que estava maduro – e mais nada.

Desejou apagar aquela terrível e indesejada lembrança. Então percebeu que apagá-la não significaria que deixou de existir e pensou na repetição daquela situação pelo mundo.

Lá fora, o dono do rebanho abatido estacionou uma caminhonete que trazia de um lado adesivo de sua fazenda leiteira e do outro de um coletivo pró-vida – antiaborto. “Respeite a vida” – logo abaixo.

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Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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