Tem violência no sorvete

Ilustração: Cynical Coyote

Sonhou com um bezerro preso numa casquinha de sorvete. Não havia sorvete, só o pequeno bovino entalado que sangrava sem parar.

Sangue era estranha cobertura que não cobria nada, muito pelo contrário – emergia de suas já violadas entranhas, ocultadas por um algo comestível que não evoca violência.

“Mugia e gemia, e quanto mais fazia esforço para sair dali, mais seu corpo afundava naquela casquinha que nem posso chamar de casquinha.”

Mais cedo, assistiu a um vídeo de descarte de vacas e bezerros na indústria leiteira. “Colateral, subproduto e produto já indesejado, consequência da idade que não é velhice, mas avaliação de validade e sentença de pouca ou má qualidade.” Ainda franzia a testa e sentia cheiro de azedume.

O que viu coalhando, a partir de imagens oníricas, não era o leite, e sim o bezerro, enquanto seu corpo misturava-se ao de outros filhotes que liquefaziam-se com suas bocas abertas de onde saíam som nenhum.

“Os olhos continuavam ali, indo de um lado para o outro até, numa inversão, o coalho sumir e sobrar somente um leite branco como qualquer outro. Então vi sangue nas bordas que espalhavam-se por todo o leite que já borbulhava vermelho e fervia numa impossibilidade de contenção.”

Quando não havia mais leite na panela, sentiu cheiro de queimado e observou retalhos de tetas com bicos feridos. Multiplicavam-se e inchavam até enchê-la – e derramavam sangue misturando-se ao que já tinha molhado todo o chão da cozinha.

Com desconforto e tontura, deitou um pouco e da cabeceira caiu uma casquinha de sorvete. Viu um bezerro derramado ao seu lado, com costelas à mostra e língua de fora.

“Tinha pouco viço nos olhos e pungente expressão de necessidade. O coitado tentava mamar o edredom que na posição em que ficou trazia forma dum úbere. Faminto, tentava e nada. Fiquei com pena e já não sabia se a impotência era mais dele ou minha. Quando tentei tocá-lo, desapareceu. Então entendi que desaparecem o tempo todo, nascidos e partidos pela romantização dos prazeres da destruição.”

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Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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