Há algum tempo, enquanto eu visitava uma horta, um homem na propriedade rural vizinha usava um maçarico para pelar um porco sobre uma velha mesa atrás da casa, a céu aberto. Pelo jeito, parecia ter sido usada inúmeras vezes para a mesma finalidade.
Era um animal de poucos meses (quando não são?) e notei sua boca entreaberta, a ausência dos olhos reduzidos a dois buracos que, de onde eu estava, pareciam bem escurecidos.
Ainda assim, sua cabeça mirava uma direção, dando impressão que poderia observar a horta onde eu estava, que começava a poucos metros de onde ele estava, mesmo sendo um corpo sem vida, uma carcaça a ser despedaçada.
A maneira como o homem olhava para o porco era como se não estivessem naquele lugar ele e o porco, mas somente ele, que não via o porco, não reconhecia o porco, somente o corpo, disposto para um fim.
Recordei-me do que li uma vez sobre a passada de olhos que não visibiliza, porque não é pra ver, só pra percorrer, por um condicionamento que é também forma de amortecimento. Tentei imaginar que tipo de relação ele teve com o porco antes de matá-lo.
Se eu perguntasse, o que teria dito sobre o porco vivo, não sobre o corpo sobre a mesa? Algo específico sobre aquele animal? Como uma vontade, um hábito, um interesse? Por que faria isso? É sempre pouco tempo para receber um nome? Ou o recebeu apenas para matá-lo e entregá-lo a alguém?
Num momento, o homem ficou de costas para o porco, olhando onde eu estava e acenou, um aceno bem cordial. Sorriu e tomou um gole de alguma coisa, apoiando uma das mãos na quina da mesa, sem mudar de posição.
O homem que me reconhecia, sem me conhecer, não reconhecia o porco que conhecia, e que já não poderia ser porco. Dar as costas ao porco não é a comum realidade do porco? Não vê-lo, não percebê-lo, não pensá-lo como a forma viva que não pode prevalecer.
Naquele contexto, eu, doutro lado, existia, nesse exercício de reconhecimento de outro ser, e o porco do mesmo lado dele, inexistia – o paradoxo que envolve o que é vida só para o que é morte.
O homem continuou a pelar o porco, ainda inteiro, espalhando um cheiro estranho. Ele e o porco, como ele e o não porco, só um corpo.
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