Uma ave morta a caminho do abate

O animal estava molhado e tinha olhar baixo, do tipo que alcança todos os lados e também nenhum (Foto: Aitor Garmendia)

Durante o engarrafamento um caminhão parou ao lado. Transportava aves amontoadas que logo seriam abatidas. Não era a primeira vez que via um veículo como aquele no mesmo lugar, e suspeitou até que pudesse ser o mesmo. Mas isso não importava para ele.

O que chamou atenção foi um animal que perdeu a vida diante dos seus olhos com a cabeça atravessada entre as grades. Estava molhado e tinha olhar baixo, do tipo que alcança todos os lados e também nenhum. “Que expressão estranha de agonia e exaustão.”

Ou talvez não seja estranha e tenha acreditado que sim por causa de uma viciada, condicionada percepção da realidade. Também estranhou os olhos já esbranquiçados que pareciam ainda mirá-lo, mesmo que fossem de ave já morta. Era mais uma criatura derrotada pelo apetite da humanidade.

“Se eu estivesse um pouco mais atrás ou do outro lado da avenida ou pendurado em árvore, quem sabe ainda seria como se me observasse.” Não ter vida, significa não ver, mas nós os vemos, ou pelo menos seus corpos, e interpretamos o que podemos ou o que nosso estado de consciência, crença ou (des)conhecimento permite.

Seu olhar não humano era um olhar sem ser, mas o que não é também tem seu peso, e pode ser mais impactante do que o ser – depende do que isso nos causa ou incita. Ainda pensava na motivação do animal. “Queria ver alguma coisa? Algo chamou sua atenção? Estava muito apertado? Queria fugir? Queria morrer? Isso não, aves não cometem suicídio.”

Quando o caminhão partiu, a cabeça continuou exposta, não se movia com o vento. Imaginou as penas se movendo e uma porção caiu no asfalto. Ainda via o animal sem vida o observando – era como se nunca tivesse partido. “Como seria se estivesse com vida?” Ainda assim, pouco viveria. “Será que os outros morrerão em quanto tempo?”

Gosta do trabalho da Vegazeta? Colabore realizando uma doação de qualquer valor clicando no botão abaixo: 




Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *