Sem lucro, vida de boi não tem valor

“Deve ter sofrido” (Foto: José Medeiros)

Encontrou boi morto em um pedaço de terra seca pouco distante do pasto. Observou de perto o animal reduzido a pele e ossos. Boca transmitia ideia de agonia. “Deve ter sofrido.” Com uma enxada no ombro e uma camisa surrada revelando o peito ossudo, um idoso parou ao lado. “Não faz tempo que morreu, mas esse sofreu. Não foi o primeiro nem será o último.”

“Por quê? O senhor conhece esse animal ou o dono da propriedade?” “Não preciso conhecer. Já encontrei vários nessa situação, mas nunca com vida, e só de olhar a gente sabe como morreu.” Pediu explicação. “Fome, apenas fome.” Vendo a reação de pouco entendimento, continuou:

“Boi encontrado desse jeito é deixado pra morrer. Quando dizem que a genética é ruim, eles separam a boiada e, sem garantia de venda, não sacrificam o animal porque dizem que não vale o trabalho, já que não tem saída. Então soltam pra morrer. Daqui não tem como um bicho desse chegar a lugar nenhum. Ou morre de fome ou é comido por bicho. No fim, vira comida de bicho de qualquer jeito.”

Perguntou se as pessoas comiam animal naquela situação por ali. O velho afirmou que não, que é como se já surgissem mortos. E, segundo ele, o povo da região acredita em uma história de que comer animal magro, sofrido, só traz desgraça. “O senhor deve ser de longe. Teve um menino aqui da região que morreu depois de comer ‘carne’ de um boi desses. Outra criança também faleceu por causa de uma sopa de farelo de osso de outro bicho assim.”

Quando o velho partiu, ele continuou olhando o boi. No lugar dos olhos, um vazio. Conforme um vento quente tocava a pele do animal, o couro fragilizado se movia como pedaço velho de bexiga. Só enxergava miséria e, mais à frente, uma floresta que se desfazia para dar lugar ao pasto. Estranhou o contraste de mata e terra seca – como se estivesse entre dois cenários.

“Parece que pra um boi viver por algum tempo tem que ter algo pra oferecer, mas o que é viver pra um boi? É nascer pra virar uma carcaça gorda? Talvez ‘genética ruim’ seja uma forma de protesto biológico não humano, uma aversão física aos nossos hábitos, que explicita de maneira mais visceral a crueldade de guardar os olhos no bolso.”

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Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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