Você não cometeu crime, mas é mantida atrás das grades

Não olha diretamente para nada. Ou fica em silêncio como se mirasse algo que ninguém mais pode ver (Foto: Andrew Skowron)

Você não cometeu crime, mas é mantida atrás das grades. Tem sinais de sujeira e luta na cabeça. Uma orelha com formato e tamanho diferente da outra. Mutilações em várias partes do corpo e filetes de baba seca. Não olha diretamente para nada. Ou fica em silêncio como se mirasse algo que ninguém mais pode ver.

Ao seu lado, tudo se repete como ao infinito. Não. Não ao infinito. “Apenas muitos, muitos e muitos”. Do lado, do lado, do lado e por conseguinte. Vida é estranha e desconfortável repetição que não foi definida por você, pela sua natureza. É isenção de inerência.
Não, isso é eufemismo. Subtração. Não há um querer – sobre o que fazer, comer e quando comer. “Para que comer?” Para morrer.

Antes procriar, procriar e procriar enquanto puder – e quando não puder, morrer e virar o que comer. O que reproduz não é seu, nada é seu. Aplacar a sede, saciar a fome, engordar, receber antibiótico, gerar vida – tudo por razão que não é sua – sucessão de acontecimentos intensos e desconectados de naturalidade. Como absorver tudo isso?

Números, marcações, perfurações e contatos que vêm e vão em tempo que permite só sofrimento. Produtos que se movem – é o que o mundo diz. A fome mata muito, pela ausência, pela indiferença, pela gula, pelo excesso, pelo hábito. Há maldade no prazer socialmente legitimado?

Sinto cheiro de ferrugem enquanto vejo a sujeira seca que cobre os parafusos das suas grades. Não sei o que você sente sobre isso, só posso inferir. Por que me negar a tentar? Humanização? Não, empatia. Há um corredor a poucos centímetros dos seus olhos. Quantos passaram por ali e quantos passarão? Sua hora logo vai chegar, e viver e morrer, então, serão duas formas de padecer – na gaiola e na degola.

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Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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