A mão que acaricia também degola animais

Ilustração: Jo Frederiks

Observou manchas no tronco e galhos afinados pela repetição da força imposta aos braços mais resistentes da mangueira. Havia sinais numa porção saliente de raiz – de golpes e de fluidos marcados como tintura que escureciam com o tempo.

Chuva, por mais forte que fosse, não removia tudo, e a copa simétrica sempre desacelerou parte do ímpeto que vem do céu apto a apagar vestígios de barbarismo.

Agressões no pé de manga eram colaterais da violência contra os animais que penduravam para sangria. De espécies diversas, preferiam sempre bem jovens e bem menores do que um animal adulto.

“Em idade tenra, especialmente, ou no princípio da segunda juventude. Para ter carne diferenciada e para não ser desrespeitoso com a mangueira em semana de data comemorativa.”

Postiço zelo que diziam ter pela árvore também diziam ter pelos animais, que, não raro, chamavam de “comida viva”. “Lá vai a comida.” “Ali tem mais comida.” “Olhe quanta comida” – e dizeres mais da mesma repetência ou similitude.

Não viam contrassenso em acariciar um animal para degolá-lo. “É retribuição pelo que comeu e bebeu, enfim, viveu.” Frase tornada comum, já que nada seria ofertado sem intenção de esfolá-lo e comê-lo.

Soube que ali morreram centenas em período indeterminado. “Às vezes, alguém encontra vestígio de criatura que padeceu com os cascos mirando galho grosso, folhas e o céu.”

Outras gerações penduraram balanço no mesmo lugar. Um vai e volta de alegria, de sorrisos, foi substituído pelo movimento da morte, do desespero, da inclemência.

Árvore ainda dá frutos, manga coração de boi, um coração vegetal protegido por casca lisa que muda de cor e tons com a idade.

Um dia, quando sangraram na mangueira um bezerro que principiava novilho e o levaram para ser descarnado a poucos metros do curral, uma criança subiu na árvore e pegou a maior manga que encontrou.

“Ele pode volta a viver com um coração de boi deste tamanho?”, disse o menino, entregando a manga a quem segurava uma faca suja de sangue.

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Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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