Como Tolstói rejeitou o consumo de animais

Tolstói em 1897 (Acervo: Tolstoy Foundation)

Se você já leu “O Primeiro Passo”, considerado na Rússia como um manifesto contra o consumo de animais, e que teve grande influência sobre o ressurgimento do vegetarianismo entre os povos eslavos do final do século 19 e início do século 20, você sabe que a influência de Liev Tolstói está muito além do campo literário ficcional. Inclusive ele chegou a dizer que preferia mais ser lembrado por seus ensaios filosóficos e pela contrariedade ao consumo de animais do que por grandes obras como “Guerra e Paz” e Anna Karenina”.

No entanto, não foi por um despertar casual que ele decidiu parar de comer animais, mas sim por uma série de eventos. Talvez o mais importante deles quando recebeu em sua casa em Yasnaya Polyana, no oblast de Tula, a visita do senhor William Frey em uma tarde de outono de 1885. Frey, ou Vadim Konstantinovich Geins, deu uma palestra a Tolstói abordando desde os benefícios da dieta vegetariana até as implicações morais da exploração de animais. Essa conscientização sobre o sofrimento animal também o motivou a escrever o ensaio “O Primeiro Passo”, publicado em 1892.

As ideias de William Frey foram trazidas dos Estados Unidos, onde ele viveu por 17 anos em comunidades protovegetarianas e vegetarianas nos estados do Missouri, Kansas e Oregon. Frey declarou a Tolstói que no decorrer da história da humanidade chegará um dia em que todos, seja por conscientização ou inevitabilidade, terão de adotar uma alimentação vegetariana. O escritor russo não se surpreendeu, mas apenas aquiesceu e exclamou:

“Sim, meu amigo, você está certo! Obrigado por suas palavras sábias e honestas. Certamente seguirei seu exemplo e abandonarei a carne.” Antes desse encontro, Tolstói já havia iniciado uma mudança de hábitos alimentares. Segundo o livro “The Vegetable Passion: A History of the Vegetarian State of Mind”, de Janet Barkas, publicado em 1975, ele começou a reduzir o consumo de carne logo depois de escrever “Confissão”, de 1879, e então foi mudando a sua alimentação até adotar definitivamente uma dieta que não incluía o consumo e a exploração de animais.

Filhas, Chertkov e literatura vegetariana inglesa

Em 1882, Tolstói já havia descrito em um de seus diários o seu interesse em alimentar-se apenas de kasha, geleias e conservas. Além do escritor, suas filhas Tanya e Masha também adotaram imediatamente uma alimentação livre de carne após os relatos bem convincentes de Frey argumentando que é possível viver muito bem consumindo apenas cereais, leguminosas, oleaginosas e frutas.

Segundo a obra “Vegetarianism in Russia: The Tolstoyan Legacy”, de Ronald D. LeBlanc, de 2001, outra pessoa a quem é creditada a adesão de Tolstói ao vegetarianismo é o seu discípulo e amigo Vladimir Chertkov, que tornou-se vegetariano quando viveu na Inglaterra nos anos de 1884 e 1885, e que levou à Rússia tudo que encontrou relacionado ao tema.

Naquele tempo, a literatura vegetariana inglesa ou voltada aos direitos animais era publicada na Inglaterra pela Humanitarian League, fundada em 1891 pelo pioneiro dos direitos animais Henry Salt, o que revela a estreita relação entre os humanitaristas e os vegetarianos da época.

Beketov, dieta e evolução humana 

O livro “A Dieta Humana no Presente e no Futuro”, escrito pelo cientista Andrey Nikolaevich Beketov e lançado em 1878, também teve considerável influência sobre Tolstói. Na obra, Beketov apresenta razões morais e psicológicas sobre o porquê seres humanos na sua progressão de um estado primitivo para um estado verdadeiramente civilizado devem abster-se do consumo de animais.

Em 1890, Tolstói escreveu o prefácio de um panfleto sobre os males da caça – intitulado “Um Passatempo Maligno: Reflexões Sobre a Caça”, publicado por Chertkov em 1890. No texto, Vladimir Chertkov argumenta que não é mais necessário, em termos de evolução, o ser humano ter que matar animais para se alimentar.

“A matança de animais não é mais uma forma natural de luta pela existência, mas sim um retorno voluntário a um estado primitivo e bestial.” Segundo Chertkov, a caça instiga no ser humano civilizado instintos animais que a consciência humana superou há muito tempo. Esse posicionamento foi endossado por Tolstói.

Comer animais é imoral 

O escritor russo passou a interpretar que o ato de comer animais é imoral porque envolve a realização de um ato contrário ao sentimento moral, ou seja, a matança. LeBlanc narra que um dia a tia de Tolstói juntou-se a eles para o jantar e encontrou uma faca e uma galinha viva sobre a cadeira.

O escritor justificou que sabia que ela gostaria de comer galinha, mas que nenhum deles a mataria, assim delegando a ela o ato de matar o animal se quisesse comê-lo – o que naturalmente ela não fez.

“Para uma senhora de classe alta de seu tempo, isso passou perto de um escândalo”, avalia Ronald D. LeBlanc. Porém, Tolstói era pacífico e tais ações tinham apenas a intenção de conscientizar, não de ofender.

Inclusive ele sempre permitiu que seus familiares, amigos e conhecidos tirassem as suas próprias conclusões a respeito de seu posicionamento em relação ao não consumo de animais.

Filosofia, ensaios e Gandhi

Pouco tempo antes de falecer, Tolstói disse que preferia ser celebrado por suas obras voltadas à sua filosofia de vida e filosofia moral, o que incluía a sua defesa de que os animais não humanos também têm direito à vida, do que pelos seus romances.

Claro que o alcance de seu trabalho como romancista o levou muito mais longe em popularidade, mas de alguma forma a sua filosofia teve um impacto muito significativo.

Exemplos? “O Primeiro Passo”, que deu origem às bases do vegetarianismo ético russo e a sua obra “O Reino de Deus está em vós”, de 1894.

Esta segunda traz uma abordagem espiritual não dogmática e que teve grande influência sobre a juventude de Gandhi, tanto que depois o líder pacifista fundou nas imediações de Joanesburgo, na África do Sul, a Fazenda Tolstói.

Gandhi, que foi influenciado pelos ensaios de não violência de Tolstói, que incluía animais humanos e não humanos, se considerava um tolstoiano.

Referências

Barkas, Janet. The Vegetable Passion: A History of the Vegetarian State of Mind. Scribner; First Edition (1975).

LeBlanc, Ronald D. Vegetarianism in Russia: The Tolstoy(an) Legacy. The Carl Beck Papers in Russian and East European Studies. No. 1507 (2001).

Gregory, James. Of Victorians and Vegetarians: The Vegetarian Movement in Nineteenth-century. I.B.Tauris (2007).

Alston, Charlotte. Tolstoy and Vegetarianism (junho de 2014).

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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