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“Contaminação”, um documentário para repensar o consumo de carne

Disponível na Netflix, o documentário “Contaminação – A Verdade Sobre o que Comemos” não é um filme sobre a exploração animal nem sobre agrotóxicos na alimentação, e sim sobre patógenos, mas leva a refletir também sobre a exploração animal. Logo no início nos deparamos com imagens de animais confinados e animais sendo separados mecanicamente – “produtos em fase de seleção na fase ainda viva”. São cenas que mostram onde se inicia a contaminação.

Não há um foco na exploração animal, mas não deixa de expor como a proximidade com a exploração animal é o que gera um cenário caótico proporcionado por um sistema alimentar em que o consumidor não é uma prioridade maior do que o lucro, embora, paradoxalmente, não haja lucro sem consumidores. Como é dito no filme, “às vezes”, os fabricantes de alimentos não pensam no que produzem como alimento, [porque] vira mercadoria, commodity. “Não pensam: ‘Meu Deus! Isso vai entrar na boca e no estômago de alguém’.”

Essa observação é mencionável, e também porque o próprio animal é reduzido no sistema alimentar à mercadoria, logo não é pensado de outra forma. O filme expõe que o “produto” é pensado em associação com o animal somente na evidência da contaminação – como de E. Coli 0157 (já encontrada muitas vezes na carne vermelha) ou graves casos de salmonela – que é citado como problema comum no frango cru.

Alguns apontamentos não parecem surpreender tanto quanto outros – como o reconhecimento de que a contaminação de muitos vegetais com patógenos, incluindo E. Coli, dá-se porque as fezes dos animais chegam aos riachos e canais de irrigação, o que suscita um questionamento. Quem está seguro em relação ao contaminante enquanto animais são criados para consumo e seus excrementos inevitavelmente podem entrar em contato com outras áreas?

Contaminação ocorre no matadouro

O ponto inegável em relação à exploração animal é que a realidade imposta a esses animais é o que culmina nessa realidade em que mesmo assim o animal não é pensado como indivíduo, mas como “meio de patógenos”. Mas se tais animais são meios de patógenos não o são exatamente pelo que é imposto a eles como meios e fins?

Bill Marler faz uma observação das mais lúcidas sobre o que os consumidores preferem ignorar sobre a realidade da indústria da carne – não é difícil entender como a contaminação ocorre. “Geralmente é no matadouro. É o corte […] feito durante o abate.” Sua crítica sobre a liberdade dos frigoríficos, em fazer o que quiser e da pífia fiscalização agropecuária, pode lembrar-nos do que aconteceu no Brasil em 2022, quando o então presidente Jair Bolsonaro sancionou a Lei 14515/2022, do autocontrole sanitário.

Curiosamente, esse tipo de “tática” é um dos pontos de maior crítica no documentário “Contaminação”, porque amplia o poder da indústria da carne, e externaliza, mais uma vez, que tudo isso é mais sobre lucro do que qualquer outra coisa. O consumidor então é figurante do seu próprio interesse, e um interesse que deve ser repensado como mais um ponto de arbitrariedade que envolve uma prática já arbitrária – que é o consumo de animais.

O filme motiva uma reflexão sobre propriedades que produzem vegetais e também criam animais para consumo, assim como a proximidade das propriedades de vegetais com fazendas onde são criados animais para fins de consumo. Podemos lembrar também que no oeste do Paraná (segundo maior criador do Brasil de suínos) foram encontrados em 2022 contaminantes na água decorrentes da criação de animais em confinamento, conforme um relatório da WAP.

“Quando você compra frango, você deve presumir que tem salmonela e campilobactéria”

Sobre o frango, destaco três afirmações feitas por autores, pesquisadores e profissionais da área de segurança alimentar no documentário: “Ao levar frango cru para casa você introduz um risco biológico à sua residência.” “Algumas das cepas de salmonela são resistentes a múltiplos antibióticos.” “Quando você compra frango, você deve presumir que tem salmonela e campilobactéria.”

Embora seja um documentário sobre saúde e segurança alimentar, reforço que acho impossível olhar para essa realidade sem considerar também que é a vida miserável imposta a esses animais por predileções de consumo que gera esse quadro. Se é possível encontrar contaminantes de “procedência animal” em vegetais, os problemas mais graves surgem por essa interação que não tem outra sustentação que não a do lucro-consumo, e na lógica da indústria, os interesses do consumo também não podem prevalecer sobre os interesses do lucro. Assim é pensado idealmente que o consumidor deve adaptar-se ao sistema e não o contrário.

Não por acaso o lobby existe exatamente para evitar que os interesses dos consumidores signifiquem menos lucro para aqueles que precisam rever “seus negócios, suas práticas”. Isso expõe também outro ponto que considero de debatível pertinência. Será que não é também a desconsideração em relação aos animais que também leva à desconsideração em relação aos consumidores? Claro que essa realidade é resultante de uma demanda, mas isso também não expõe a urgência de repensar a demanda?

Marion Nestle, autora do livro “Safe Food”, também faz uma observação interessante quando diz que o hambúrguer, que, claro, é baseado em carne moída, é o resultado da mistura de até 400 animais. “É horrível pensar nisso”, comenta. “Além de abater todos os animais na mesma instalação, você pega pedaços de vários animais e os tritura juntos, uma grande mistura.”

Como ignorar a questão também da violência nesse apontamento? E se não é suficiente para reflexão, há outro ponto que cito em relação ao seu discurso: Se apenas um animal estiver contaminado em uma mistura com vários animais, o que podemos imaginar que acontecerá quando o consumidor ingerir uma pequena parte desse animal?

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

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