Couro também é morte

Pintura: Twyla Francois

Caminhando pelo centro, sentou em um banco e observou os passantes. Jaquetas, casacos, bolsas, calçados, cintos, detalhes – quantos produtos em couro. Um homem abriu a porta do carro ao seu lado e viu que os bancos eram todos cobertos por couro.

Reconhecia couro de animais, algo que aprendeu com seu avô que décadas atrás foi proprietário de um curtume. Mas já não entendia a fixação humana pelo couro e como as pessoas podem não ver o que é o couro.

“Quantos sentiriam prazer em usar couro depois de ver a esfola de um animal abatido há poucos minutos? Mudaria alguma coisa? Prefiro acreditar que sim, porque o couro é a pele que protege um corpo. E as pessoas o usam de forma tão automática, e também por causa de sua ingente dissociação.”

Coçou a cabeça, levantou e caminhou. “Quantos químicos derramados em um pedaço de pele morta transformada em produto, uma pele arrancada após a violação e destruição de uma vida. Uma? Claro que não, olhe bem o que está diante de meus olhos.”

Parou em frente a uma grande selaria, onde o cheiro de couro, que é cheiro artificial e desconectado de origem, ia longe. “Se estivesse na esquina, ainda o sentiria. É a química que ludibria?” Pensou em partes de quantos animais estavam reunidas naquela loja. “Quem é capaz de chutar um número? Mas que chute alto para não se distanciar demais da realidade.”

Um homem comprava sorvete na calçada ao lado e abriu a carteira de couro – com selo de legitimidade. “É isso mesmo. Por todos os lados. Onde não há fragmentos de morte? Como não estranhar? Podemos enfeitar a morte, transformá-la em algo novo, mas o que é proporcionado por sua consumação não deixa de ser resultado de sua própria ação; o que a mim parece algo bem claro – a conexão persiste, permanece…”

Lembrou de um amigo que disse ficar sem a carne, mas não sem o couro. “Que problema há nisso?” “Respondi-lhe que o couro é sim subproduto, mas quão digno é apropriar-se da pele de uma criatura a quem a morte é evitável imposição? Que há de moral nisso? E o que ganha a vítima?”

Se vissem a esfola e o sangue morno colado na porção interna do couro do pobre animal sem vida…pendurado pelos pés…quem sabe…

Gosta do trabalho da Vegazeta? Colabore realizando uma doação de qualquer valor clicando no botão abaixo: 




Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *