De olho na carne (ou na crueldade)

Olho acompanhava. Aparecia onde queria. “Melhor abaixar” (Pinturas: Jackson Thilenius/René Magritte)

Ameaçou cortar carne e parou. Não gostou do olho no centro. “Como comer assim?” “Quem colocou ali?” “Se pelo menos fosse de esguelha, uma coisinha sutil, suave, condescendente…” “Ah, vá!” “Pra que me encarar?” “Tenha dó, né?”

Volteou a mesa. Ingenuidade ou maldade, os dois ou nenhum dos dois. Olho acompanhava. Aparecia onde queria. “Melhor abaixar.” Levantou a cabeça devagarinho. Ainda no mesmo lugar ou em qualquer lugar – sem parar de encarar.

Sentado no chão, ficou de costas para o prato, respirou fundo e contou até três. Não! Tudo igual. Mais uma vez. “Já sei!” Com olhos fechados, tateou a mesa e passou os dedos da mão direita pela borda do prato.

“Até aqui, tudo bem.” Pegou garfo e faca. Quando ameaçou cortar a carne, esbarrou o mindinho por algo estranho, uns pelinhos que iam e vinham. Tirou a mão do prato com reflexo tardio de quem levou choque.

Insistiu. Mudou de posição. Salivou com o garfo enfiado na carne. Boca nem fechava de vontade. “Ah, agora sim!” A cada mastigada, um gemido – seu que não. “É alucinação. Deve ser fome.”

Na curiosidade, abriu só olho direito, depois esquerdo. Terceiro, que não era seu, sangrava na metade da carne que restava – uns riscos atravessados na esclerótica. Enquanto comia, pensava que era mioglobina. “Gosto de suculência!” Sentiu dor de estômago, estranho desprazer em comer.

Distanciou. Pela janela, viu cachorro brincando com bola, passarinho no muro e gato lambendo pelo. “É… hora de lavar louça.” Bife continuava no prato, sem sangue no olho, sem olho.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *