No romance “Ulysses”, de James Joyce, o abate de animais é definido pelo narrador como “massacre dos inocentes” (2012, p. 319). A referência sucede uma observação sobre os animais que são criados e mortos para o Natal, e sendo chamados também de “animais de natal”, como no caso de “perus e gansos de natal”.
Há uma crença de que esses animais, se existem, existem para o Natal, sendo condicionados à celebração; assim não tendo vidas em desconexão com essa imposição. Portanto, “sendo de natal”, não podem ir além. Uma observação que envolve também a contradição dessa violenta relação entre humanos e outros animais está na afirmação satírica do narrador de que “paz e guerra dependem da digestão de algum fulano”.
Há uma série de observações feitas pelo narrador que referenciam o consumo de animais de forma incômoda, como quando ele diz: “Redanho tripa mofada goela disfarçada e misturada.” Ou: “[…] Sangue sempre a calhar. Insidioso. Lambe aí, fumaçando de quente, grosso de açúcar. Fantasmas famintos.” Sua percepção que origina um embolado vocabular evoca não apenas um fluxo de consciência como o estranho normalizado e sua celeridade.
Também traz outra observação, precedente, em relação à indiferença no ato de depenar e estripar aves. Na sequência, o narrador observa a banalização do que ocorre no mercado de gado, não sem satirizar com originalidade a indiferença pela maldade, que se normaliza com a crença na ausência de maldade:
“Os coitados dos bichos lá no mercado de gado esperando que a machadinha viesse partir o crânio. Muu. Os vitelos tremendo. Méé. Vitela. Chucrute com vina. Baldes de magarefes frêmito de pleuras. Dá lá aquele pedaço de peito no gancho. Plop. O velho do saco de ossos. Ovelhas esfoladas com olhos de vidro penduradas pelas ancas, fuços ovelhos ensanguepapelados fungando geleia nasal na serragem. Bexigas saindo balões” (2012, p. 318).
A maneira como o narrador utiliza a linguagem nessa descrição chama mais atenção para o que é observado do que se a descrição tivesse ocorrido de outra forma, menos inovadora. É perceptível que nesse cenário a única preocupação de um homem, assistido pelo narrador de Joyce, é com quanto ele pode ganhar ou perder com os pedaços dos animais: “Não me estrague esses pedaços, guri.”
O que é observado pelo narrador é também a exposição do animal como é, dificultando a dissimulação tão mais presente em nosso tempo do que em 1920, quando James Joyce conseguiu publicar “Ulysses”.
Mais cedo, o narrador, nas suas colocações que mais tarde teriam análogos em “O Burrinho Pedrês”, de Guimarães Rosa, já havia observado o desalento dos animais no mercado de gado, assim como a banalização dessas vidas: “Aquelas manhãs no mercado de gado, os animais mugindo nos currais, as ovelhas marcadas, a queda e o baque do esterco, os criadores de bota ferrada pisando a forragem, estalando uma palmada em uns quartos traseiros prontos pro abate, esse é de primeira, toscos rebenques na mão (2012, p. 169). A velocidade da narrativa permite-nos pensar na velocidade com que se determina a miséria desses animais nesse ciclo infindo, já que mudam os sujeitos, não as experiências.
Depois ele observa animais debilitados e assustados obrigados a caminharem em direção à miséria final. Mesmo guiados por humanos, eles não deixam de antagonizar interesses humanos: “Um rebanho dividido de gado marcado passou pelas janelas, mugindo, cabisbaixando com cascos acolchoados, espanando as caudas lentas nos lombos ossudos empelotados. Por fora e em meio deles corriam ovelhas salmilhadas balindo de medo. […] – Eia! A voz do zagal gritou, o açoite ressoando em suas ancas. Eia! Sai daí! Quinta, claro. Amanhã é dia de abate. Com as crias. […] Comércio de carne morta. Refugo dos matadouros pros curtumes, sabão, margarina” (2012, p. 221). Tudo que envolve os animais permite pensar numa constante aceleração, do viver, do morrer, da destinação e substituição.
O narrador também não deixa de satirizar os hábitos alimentares do herói Leopold Bloom: “Mastigava destemperadamente, o senhor Bloom, as vísceras de aves e quadrúpedes. Gostava de sopa grossa de miúdos, moelas acastanhadas, um coraçãozinho recheado assado, fatias de fígado fritas com farinha de rosca, ovas de bacalhoa fritas. Acima de tudo gostava de rins de carneiro grelhados que lhe davam ao paladar um fino laivo de tênue perfume de urina” (2012, p. 163). Assim Bloom tem uma grande diversidade de despojos de morte sobre a mesa, e que recebem uma escatológica observação final.
Outro exemplo é: “Ele se deteve diante da vitrine do Dlugacz, encarando os rolos de salsichas, cracóvias, pretas e brancas. […] Os elos brilhantes plenos de carne embutida alimentavam seu olhar e ele inspirava tranquilo o hálito morno do sangue de porco temperado e cozido. Um rim exsudava sangue em gotas no prato azulpombinho: o último” (2012, p. 168). Os relatos do narrador, se visam uma descrição também visam instigar uma observação crítica fundamentada na ironia.
Isso se fortalece pela conciliação que pode ser feita entre esses relatos, que não deixam de evocar um costume que depende da trivialização da violência, e o momento em que Bloom dedica cuidados a uma gatinha por quem tem grande estima:
“O senhor Bloom observava curioso, carinhoso, a maleável forma preta. Limpo de se ver: o brilho da pelagem luzidia, o tufo branco embaixo do rabo, os olhos verdes lampejantes. Ele se curvou até ela, de mãos nos joelhos. – Leite pra gatinha, ele disse. O senhor Bloom se preocupa com os interesses da gata e conversa com ela. – Você não quer nada pro café? Um muxoxo macio sonolento respondeu: – Mn” (2012, p. 165). Já com outros animais não humanos, conforme os exemplos apresentados, a relação se dá de outro forma, à mesa, por meio do ato de consumi-los.
Assim Bloom reproduz a realidade comum de que é a estima que define quais animais acreditamos que podem ou não receber consideração, o que inclui também determinar pelo hábito quem tem o direito de viver, não de morrer como mero fim humano. Esse momento de “carinho” com a gata surge entre intervalos em que ele está envolto por práticas que o narrador descreve em termos que escapam à romantização normalizada e aos eufemismos como lugares-comuns que envolvem hábitos de consumo baseados em violência.
Na mais extensa obra de Joyce há também referências à metempsicose ou transmigração de almas. A menção, em “Ulysses” pensada a partir dos gregos (que não são idealizadores, mas há entre eles comunicadores dessa tradição), vem acompanhada de uma consideração sobre a possibilidade do ser humano renascer como outro animal (2012, p. 177), um tema que já intrigava Joyce principalmente pelo seu interesse na questão da familiaridade animal (um tabu ocidental mesmo depois de Darwin), fazendo com que ele o levasse para suas obras.
Embora não seja algo aprofundado em “Ulysses” (2012, p. 176-177), é uma referência que faz pensar em outra obra de Joyce, “Retrato do Artista Quando Jovem”, publicada quatro antes de “Ulysses”, em que ele traz também a questão da familiaridade entre humanos e outros animais, ao explorar também o conceito da animalidade de forma não antropocêntrica a partir do personagem e seu alter ego Stephen Dedalus.
Podemos lembrar que Pitágoras também abordou a questão da metempsicose e, ao mesmo tempo, tornou-se a referência primeira do vegetarianismo ocidental, sendo discutido por diferentes vieses, como o místico e o ético. Antes do surgimento do termo vegetariano no século 19 era comum se referir no Ocidente a quem não consumia animais como “pitagórico”, algo que persistiu por muito tempo, se considerarmos que Pitágoras viveu séculos antes da era comum (570 a 49o ou 495 a.e.c) e o termo teve origem com seus discípulos.
Uma palavra sobre “Retrato do Artista Quando Jovem”
“Em Retrato do Artista Quando Jovem”, Stephen Dedalus desafia perspectivas metafísicas que envolvem a divisão entre humanos e outros animais. O confinamento e o abuso dos animais o incomodam porque o rapaz se vê em situação análoga. E, curiosamente, a partir do momento em que ignora os limites estabelecidos entre humanos e outros animais, ele começa a ver porcos, bois, vacas, pássaros e morcegos sob outra perspectiva.
Referência
JOYCE, J. Ulysses. 1.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 1112 p.
Leia também “Pitágoras, o filósofo grego que condenou o consumo de carne“, “Ovídio: “Deixe o boi morrer de velhice“, “Teofrasto: Explorar animais significa privá-los de viver“, “Plutarco: Consumo de carne é legitimação da brutalidade” e “Para Empédocles, matança de animais é injustificável“.