“EO”, um filme sobre a dor de ser um burro

Obra do polonês Jerzy Skolimowski é sobre o trânsito que envolve a vida de um burro entre a dominação e a resistência

“EO” é um filme do cineasta polonês Jerzy Skolimowski que apresenta um burro (o seu zurro dá nome ao filme) em diferentes cenários de exploração e violência, envolvendo não apenas a sua realidade como a de outros animais. “EO” traz diversas semelhanças com “Au hazard Balthazar, de Robert Bresson, sobre o qual já publiquei, que no Brasil recebeu o título “A Grande Testemunha”.

Em menos de 80 minutos, Skolimowski explora o “não lugar” do animal, já que a obra é sobre o trânsito que envolve a vida de um burro entre a dominação e a resistência. Da relação controversa estabelecida com o animal no circo, onde ele é sujeito para alguém e meio para outrem, de onde é “removido” como “bem móvel”, em decorrência de falência, é iniciada uma jornada por lugares e práticas desconhecidas por EO.

No filme, Skolimowski tenta transmitir o que é o olhar não humano sobre essa realidade, o que explica também por que o filme apresenta poucos diálogos. Toda a história é construída pouco recorrendo à linguagem falada, que tem importância secundária. O caráter intimista da obra está no que proporciona ao aproximar-nos de EO, de seus olhos, de suas reações que, mesmo quando silenciosas, não são sobre um estado de apatia, mas do que deve traduzir-se em alteridade e empatia. A ideia é colocar-nos ao lado de EO, não na frente, o que confronta o especismo da relação humana com esse e outros animais instrumentalizados.

EO conhece a realidade de cavalos em um haras e, em um momento de exasperação, derruba uma estante de troféus. “De que valem esses troféus?”, pode ser a questão apontada por Skolimowski. Logo decidem livrar-se do burro – o que revela que diante da primeira adversidade o que persiste é sempre o “não lugar” do animal. Há também uma hierarquia que envolve a consideração não humana pelo que é valor econômico no filme – porque enquanto EO é deixado fora do haras após a inauguração, e invisibilizado, toda a atenção volta-se para os animais de raça, e não pelo valor inerente desses animais.

O papel de EO naquele lugar era puxar carroça. Depois ele é enviado para uma propriedade onde desenvolvem terapia para crianças com animais. Usado para montaria, EO foge após receber a visita da jovem Kasandra, com quem conviveu no circo.

A relação controversa dos dois lembra a do burro Balthazar e Marie, de Bresson, porque Kasandra, que persiste na autoconsciência de EO, como um “lampejo memorial terno” de que nem tudo sobre os seres humanos é violência e maus-tratos, o visita, porém não o liberta da vida de exploração.

Essa impossibilidade é o que conecta EO ao que já é irrealidade, e que irrompe em sua fuga quando é deixado por Kasandra, que deve escolher entre um homem (namorado) e o burro. Escolha análoga é feita por Marie, de Bresson, que apaixona-se por um rapaz que é cruel com Balthazar.

O sentimento pelo animal nos dois filmes é secundarizado pela condição não humana, pelo fatalismo das relações, e a arbitrária ideia de que uma escolha só pode ser possível em detrimento de outra. Em fuga, EO testemunha a morte de animais silvestres por caçadores. Skolimowski convida à aproximação, ao conhecer dos corpos e seus sons, assim como faz outras vezes, num antagonismo à invisibilização não humana.

A fotografia do filme e os estados de EO também permitem pensá-lo como criatura separada do espaço em que se encontra, porque nada é mais recorrente sobre ele do que estar em um lugar como se não estivesse – há um constante deslocamento-estranhamento, em que o retirar-se desse estado só é possível como uma lembrança que ganha tons de fantasia.

EO também só é percebido pelo que não é, pelo que não assume outra forma senão de imposição. Na cidade, EO observa e zurra diante de peixes presos em um aquário. É seu nome que chega aos peixes cativos. Ele é capturado por funcionários públicos e solto por um homem que declara-se anarquista durante uma partida de futebol. Celebrado por torcedores de um clube, EO é espancado por torcedores adversários.

A igualdade para o animal não humano só existe em forma de violência. Batem em humanos e então batem no burro associado aos humanos odiados, embora haja um vazio em sentido pelo que não pode ser atribuído ao burro. Em seguida, uma máquina de quatro pernas corre diante de um cenário que se distorce e que ressalta uma fotografia vermelha (explorada em diversas cenas do filme) – que pode ser uma referência à condição não humana, seu desvalor enquanto vida e estado que oscila da permanência à impermanência resultante da violência, do derramamento de sangue.

EO é resgatado e, durante o tratamento, um homem sugere que ele seja sacrificado, o que é rejeitado. A descrença na recuperação do animal revela o que no senso comum evoca a “compaixão prática” – o cômodo descarte da cura em relação ao não humano. Ou simbolicamente como se a solução para a violência contra não humanos fosse somente a morte, pelo que é irrepetível.

Skolimowski constrói um olhar sobre a exploração animal a partir do que é visto por EO, numa exposição sem diálogos. Se estamos diante de determinada violência, é pelo que um animal dominado vive diante de outro animal dominado. Outro exemplo disso surge quando EO é enviado para puxar carroça em uma fazenda de peles – onde animais são mortos por eletrocussão. Conhecemos suas faces, suas expressões, seus sentimentos. A resistência de EO culmina em um coice contra quem os subjuga e, ao mesmo tempo, na exposição do medo e da fragilidade não humana.

A cena também situa o que, na gradação das experiências e testemunhos de violência, não pode ser outra coisa que não uma contumaz resistência – o que também remete mais uma vez a autoconsciência animal. O paradoxo da sobrevivência também é explorado por Skolimowski quando EO é vendido para ser abatido e reduzido a salame junto de alguns cavalos – porque quando o desejo de exploração não é pela vida é pela morte.

Durante a viagem no caminhão, ele troca olhares com porcos a caminho do matadouro em outro caminhão – são misérias compartilhadas, embora EO, em diversas cenas, seja corpo sozinho, que evoca uma solidão e que vive os constantes desencontros da cumplicidade. Ao contrário de Balthazar, EO escapa de ser morto, e não sabemos até quando, mas não da exploração, quando seu corpo mistura-se ao de dezenas de bovinos. EO não vê mais Kasandra, assim como Balthazar não viu mais Marie.

O filme está disponível no Mubi.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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