Kuzman e a carroça do Velho Goran

“Você não guia a carroça. Quem guia é o cavalo, e você não o respeita” (Arte: The Old Cartshed, Stormy Weather)

Havia um homem em Valjevo que sempre reclamava o quanto era difícil atravessar a ponte do Rio Kolubara guiando uma carroça. Um dia, depois de ouvir a mesma história mais de dez vezes ao longo de meses, meu bisavô, ainda muito jovem, chamou-lhe a atenção:

— Você não guia a carroça. Quem guia é o cavalo, e você não o respeita.

— Como?

— Isso mesmo, meu senhor.

— Como não o respeito?

— Você o força a carregar tanto peso que me admira que até hoje ele não tenha saltado da ponte para aliviar a própria dor. Mas ele não reclama, pelo menos não da maneira que não lhe agradaria. Ele vai de um lado para o outro, tentando se equilibrar, com os cascos sangrando. Isso não lhe incomoda, não lhe causa vergonha? E você ainda bate nele quando ele dá um mero passo fora de linha.

— Claro, porque esse é o trabalho dele.

— E quanto você paga a ele pelo serviço?

— Dou comida e um lugar pra dormir, é o que cabe a todos nós.

— Então ele come à mesa com você, dorme dentro de sua casa e vocês negociam o preço pelo serviço?

— Não, é claro que não!

— Então esse não é o trabalho dele.

— Ainda é, e isso não lhe interessa.

— Por que não cuida dos ferimentos no lombo desse pobre animal?

— Não diga o que não sabe. Eu cuido, sempre cuido. Somos companheiros. Mas os ferimentos sempre voltam.

— Sim, porque a dor é proporcional ao desamor.

— O quê?

— Deixe. Mas dou-te um conselho. Liberte esse animal ou ele há de se libertar de você.

O Velho Goran riu e chicoteou o lombo de Kuzman antes de desaparecer na cerração matutina.

Na semana seguinte, Blago, um amigo de meu bisavô, revelou que o Velho Goran havia falecido.

— O que aconteceu?

— O cavalo saltou da ponte com a carroça, levando o velho junto — relatou Blago.

O velho soçobrou – submergiu, e Kuzman, o cavalo, emergiu – livre de amarras, às margens do Kolubara. Meu bisavô contava que Kuzman estava livre dos ferimentos. “As águas do Kolubara eram impersistentes e misteriosas como a vida, que por vezes cicatrizavam do desvalido cada ferida”, diziam.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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