Mas e a dor do animal?

Como a dor pode ser uma ausência objetiva, uma isenção de sofrimento, num lugar que é continuidade dum descontentamento cíclico e precedente? (Foto: Aitor Garmendia/Tras Los Muros)

Do lado de fora do matadouro, vi quando o rebanho desceu para não retornar e perguntei-me “o que são dor e morte para um animal que está a caminho de encontrá-las?”

Nas vezes em que compartilhei essa consideração com outros, que a endossam, disseram-me que não há dor; e sobre a morte, nada responderam, porque, como a dor pode ser dissimulada pelo ser humano, vilipendiar o impacto da morte não humana é sofístico.

Mas e a dor do animal? Como a dor pode ser uma ausência objetiva, uma isenção de sofrimento, num lugar que é continuidade dum descontentamento cíclico e precedente? A negação da dor não humana é comumente associada ao processo de degola, quando dizem que o animal atordoado já não sofre.

Isso é discutível e impreciso, porque não há garantia de 100% de supressão de dor. Nunca há, mas quem diz que sim nunca esteve no lugar desses animais e falará como se tivesse vivido a experiência do abate – como se pudesse mensurar com exemplar retidão a exiguidade duma dor que não é sua e que o beneficia.

Então o faz, com mais paroxismo, por conveniência, por interesses econômicos ou de consumo. Bom, consideremos agora que sim, que um animal, de repente, não sente dor nenhuma durante a degola. A dor não vem somente desta.

Ele não sofreu no atordoamento? Não há dor no disparo de dardo cativo, quando sua face ganha expressão medonha e desesperadora e luta para equilibrar-se sobre as patas?

O próprio som que vem do box, de um corpo caindo, sendo privado de existência e subtraído de sua essência, é para mim símbolo de dor, assim como sua face roçando, numa perdição sacramental, pelas paredes móveis ou imóveis. A neutralização de sua força também vem da forçosa manipulação de sua dor.

E as cabeças submersas que recebem choque elétrico em cubas, com corpos em relutância? E a asfixia por gás carbônico? Degola é sangria, e sangria é a garantia do fim, mas e o todo, sua condição pregressa e antepositiva? E a reticência associada ao temor pela dor? Agitações emocionais também não podem ser manifestações de dor?

E a força imposta para que seja enviado ao matadouro? A condição em que é enviado para a morte? O percurso e o cenário que podem impeli-lo à resistência? E animal resoluto é tratado com abraços, carinho? Viagens longas geram prazer ou dor? Calor intenso num estado de amontoamento culmina em alegria ou sofrimento? E o frio? E quando a chuva invade a carroceria?

Já vi chamarem de teimoso um animal criado para consumo que ignorou comandos que levariam ao seu fim. Hesitação também não pode ser forma de anteparo a dor? E o confinamento obrigatório por toda a vida ou por período temporário, não gera dor?

Afastamento e supressão não despertam dor? E os impedimentos sociais, os afastamentos familiares, as coibições, cessações de vínculos? Dirão que o tempo traz esquecimento, mas sendo verdade, o presente não leva ao sofrimento? E se eles esquecem, devemos usar isso a nosso favor para manipulação de suas dores em nosso benefício?

Quem dirá que matadouros são lugares que não aludem a dor? Olhar para um animal e pensar na lâmina que corta seu pescoço como algo indolor é pra mim observação, por conveniência, simplista demais, e mesmo na sua mecanicidade evoca crueldade, vulnerabilidade e imoralidade.

E talvez até mais na sua mecanicidade, porque esse constante aperfeiçoamento que mascara a crudelidade favorece negação, manipulação e anulação do reconhecimento de que há um mal sendo imposto a alguém o tempo todo.

A dor de um animal não humano criado como meio para um fim vem do não ser, do não manifestar, do não compartilhar, do não estar – são fatores cumulativos que envolvem condicionamento e subjugação, que são violências, e você pode ou não reconhecer.

Então falar de dor associada somente à degola, ao sangue vertido que determina o fim da oxigenação cerebral dum animal e garante sua morte é desconsiderar um processo amplo de um viver, para ser produto, que é não viver.

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Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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