Para Montaigne, é uma presunção crer que somos superiores aos outros animais

Uma reflexão a partir de “Sobre a crueldade”, do livro “Os ensaios”

Até hoje a crença na superioridade humana é utilizada para endossar usos e abusos contra muitos animais. Basta olharmos à nossa volta para reconhecermos como essa realidade ainda é normalizada. Afinal, a maioria olha para o que convenientemente deve ser reprovado, mas não para o que afeta interesses que não querem mudar, como os que envolvem consumo e outras práticas exploratórias impostas aos animais.

Embora o mal da crença na superioridade humana, que traz consigo uma exclusão de valores e interesses não humanos, continue perpetuando violências, é interessante perceber que não somente na contemporaneidade, mas em tempos bem mais distantes pensadores escreveram e publicaram algo visando ajudar a mudar nossa percepção sobre os animais não humanos e, quem sabe, assim colaborar para transformar nossa relação com eles.

Na obra “Os Ensaios”, por exemplo, publicada em três edições, de 1580, 1582 e 1587, o filósofo renascentista Michel de Montaigne, também conhecido como o precursor do gênero literário ensaio, explica que foi a partir do reconhecimento da semelhança entre nós e outros animais que ele passou a reconhecer como uma presunção a crença na superioridade humana (2010, p. 230).

Esse seu pensamento também foi influenciado por uma percepção não ocidental dos animais, já que Montaigne se interessava em conhecer a relação de outros povos com os animais e em diferentes períodos – assim como os que influenciaram a percepção grega quando favorável aos animais. Mais tarde, durante o Iluminismo, isso também ocorreria com Voltaire.

A observação de Montaigne sobre a superioridade humana também é referenciada no livro “O silêncio dos animais: Sobre o progresso e outros mitos modernos”, do filósofo John N. Gray, que aponta que o filósofo renascentista “zombava da crença de que os seres humanos são superiores aos outros animais, rejeitava a ideia de que a mente humana espelha o mundo e ridicularizava a noção de que é a razão que permite aos humanos viver bem” (2019, p. 56).

Sobre prejudicar animais

Ao questionar o valor do pensamento, Montaigne coloca em xeque a excepcionalidade dos atributos humanos que devem ser considerados na desconsideração de outros animais. Assim sua astúcia está também na intenção de subverter o sentido daquilo que o humano pode considerar em si mesmo uma distinta e insuperável qualidade também enquanto razão.

Montaigne observa no capítulo VIII, “Sobre a afeição dos pais pelos filhos”, “que se existe uma lei realmente natural, e que é universal e perpetuamente gravada em outros animais e em nós, é a de, pela própria preservação, fugir ou querer fugir do que o prejudica (2010, p. 192). Ponderando sobre esse apontamento de Montaigne, podemos pensar em tudo que fazemos com outros animais que é prejudicial a eles. E ainda assim os submetemos a situações em que a fuga pode ser somente um desejo quando, pelo ardil humano, é uma impossibilidade. Ademais, criamos espaços e situações em que o mal está também no ardil de impedir que o animal reconheça o mal inerente e iminente. Afinal, não é assim que ocorrem as explorações decorrentes de nossos interesses de consumo, como para a alimentação, além de outras?

E quanto disso seria normalizado sem a crença antagonizada por Montaigne no século 16 de que podemos fazer o que fazemos porque somos superiores a esses animais, portanto podemos exercer domínio sobre eles e fazer deles um fim em nós mesmos? Se não houvesse tal crença quanto do que é praticado hoje, e que é um mal para tantos animais, teria continuidade? A crença na superioridade também foi usada para favorecer uma crença de que o mal não deve ser visto como um mal.

Há mais razão contra a matança de animais 

Montaigne viveu em uma época que, embora também fosse terrível para os animais, está também bem distante da nossa se considerada a exploração animal em números. Claro, algumas práticas foram abolidas, mas podemos afirmar que a crueldade também? De modo algum. Nunca foram explorados e mortos tantos animais para fins de consumo. Isso torna atual o que ele pontua no capítulo “Sobre a crueldade”:

“Entre os vícios, odeio cruelmente a crueldade, tanto por natureza como por julgamento, como sendo o extremo de todos os vícios. Mas isso chega a tal fraqueza que não vejo degolarem um frango sem desprazer, e não suporto ouvir gemer uma lebre sob os dentes de meus cães […]. Os que devem combater a volúpia usam de bom grado, para mostrar que ela é totalmente viciosa e irracional, o argumento de que quando está no auge nos domina de modo que a razão não consegue ter acesso a nós” (2010, p. 222-223).

Montaigne reconhece que há mais razão contra a matança de animais do que a favor dela. E se a crueldade é praticada na sua definição como vício, isso decorre também da normalização que afasta essa percepção. Exemplo disso está também na negação do reconhecimento da crueldade no uso que fazemos dos animais; assim como em ignorar que exista nisso um mal. Assim a crueldade se é perpetuada como vício, o é pela contraditória rejeição de admiti-la como crueldade.

“Não pego animal vivo a que não restitua liberdade”

Montaigne, que também reconheceu o mal da caça, não faz distinção entre humanos e outros animais quando diz que sente uma compaixão muito terna pelas aflições do outro. “Quanto a mim, jamais consegui ver sem desprazer perseguirem e matarem um bicho inocente, que é sem defesa e não nos fez sofrer nenhum mal. E o cervo que comumente, sentindo-se sem fôlego e sem força, e não tendo outro remédio, se vira e se rende a nós mesmos que o perseguimos, pedindo-nos piedade por suas lágrimas, […] sangrando, e lembrando, por seus queixumes, um suplicante, isso sempre me pareceu um espetáculo muito desagradável. Não pego animal vivo a que não restitua a liberdade. Pitágoras fazia o mesmo, comprando-os dos pescadores e dos passarinheiros” (2010, p. 227).

Montaigne, que cita Sêneca sobre quem diz que adotou com fervor em sua juventude a abstenção do consumo de animais, também não seria o primeiro nem o último a pontuar ou parafrasear que o mal contra outros animais levou ao mal contra humanos. Nessa conclusão, apesar de não ser a motivação ideal para não causarmos mal aos animais, já que deveríamos considerar o mal em si de prejudicá-los e não o que isso pode desencadear em relação a nós, encontramos a continuidade de uma crença que remete a outros tempos, contrários à exploração animal, referenciado também como uma era de ouro – antagônica à exploração e à matança. O próprio Pitágoras, já citado por Montaigne, também a referenciaria e a usaria como motivo para que o mal da matança fosse cessado:

“[…] foi, creio, pelo massacre dos animais selvagens que o ferro tingido de sangue esquentou pela primeira vez (2010, p. 228). A referência ao massacre de animais selvagens remete a um período precedente à domesticação de animais, e que seria percebido também como uma ação que levaria a um outro tipo de matança de animais, resultante da domesticação.

Reprovando-a, Montaigne, que também tomara parte nessas práticas, afirma que “as índoles sanguinárias em relação aos animais atestam uma propensão natural à crueldade” (p. 228). Porém, como observamos antes, é uma crueldade praticada sem reconhecê-la dessa forma, principalmente quando dela muitos participam, que é também o que influenciará e determinará sua continuidade.  Diante de toda a violência contra os animais, e que segundo ele, levaram a outras violências, Montaigne chegou a ver necessidade, como parte do desenvolvimento humano e da educação, em impor respeito e afeto por eles.

Precisamos mudar nossa relação com outros animais 

A metempsicose (transmigração de almas), baseada na crença de que dependendo do que faz em vida todo ser humano pode renascer como outro animal também foi um tema de interesse de Montaigne, e que ele conheceu por meio de Pitágoras que a conheceu com os egípcios – chegando posteriormente, segundo o filósofo renascentista, a ser adotada também pelos druidas, pelos antigos gauleses.

Assim ele explora também como a questão da animalidade transita entre povos a partir de relações de fronteira, de ressignificações e interpretações. O problema é que para o que Montaigne postulava sobre os animais, e que apresentamos até agora, a transmigração de almas, da maneira como é trazida por ele e também por outros autores, não deixa de reproduzir um lugar indesejado como o viver desses animais, porque as formas não humanas acabam ganhando um sentido em que renascer assim é uma espécie de punição. Nisso subsiste uma crença, por associação, de que existe um mal em não ser humano.

No final do capítulo “Sobre a crueldade”, sua mensagem é de que precisamos mudar nossa relação com outros animais. O apelo está na sua defesa de que temos um dever geral para com os animais, que têm vida e sentimento. “Devemos justiça aos homens, e bondade e benevolência às outras criaturas capazes de recebê-las. Há certa relação entre elas e nós e certa obrigação mútua” (2010, p. 230-231).

Embora seja possível fazer observações críticas sobre o que é colocado por Montaigne, como quando ele se refere a criaturas “capazes de recebê-las”, importante é considerar que se trata de uma defesa do século 16. Ademais, como parte de uma proposta de reconhecimento universal de consideração, ele não deixa de fazer defesas mais abrangentes como quando cita Virgílio: “Todas as espécies sobre a terra, homens e animais selvagens, espécies marinhas, rebanhos e voláteis coloridos, se precipitam para os furores e os fogos do amor” (2010, p. 340)

Contra a crueldade e pelo estímulo à empatia 

A experiência de sentir o amor e expressá-lo, clara também no capítulo VIII, “Sobre a afeição dos pais pelos filhos”, em que ele reconhece os laços familiares criados pelos animais não humanos, e que mesmo hoje são comumente rompidos quando entram em conflito com o interesse humano em relação a esses animais, é um dos elementos que Montaigne também usa para ratificar sua oposição à crueldade contra os animais.

Em “Sobre a crueldade”, ele também faz observações positivas sobre como, em suas pesquisas, descobriu exemplos de empatia pelos animais em diferentes lugares; como as obras de caridade aos animais realizadas pelos turcos, que também construíam hospitais para eles. Esses exemplos surgem também como parte de seu estímulo à empatia.

Montaigne cita ainda que os romanos tinham um serviço público para alimentação dos gansos e que os atenienses decidiram libertar os burros utilizados na construção do templo Hecatompedon – permitindo que transitassem por onde quisessem e vivessem como quisessem (2010, p. 231).

Sobre os agrigentinos, ele lembra que eles sepultavam os animais – incluindo cavalos, cães e pássaros. Claro que diversas dessas práticas não representam a superação da percepção de utilidade desses animais, já que várias práticas em forma de homenagens surgiam também do mérito atribuído ao animal.

No entanto, para o tempo em que ocorreu, não deixam de ser exemplos resultantes de uma perspectiva sobre outros animais que chama atenção mesmo hoje. “Os egípcios enterravam os lobos, os ursos, os crocodilos, os cães e os gatos em lugares sagrados: embalsamavam seus corpos e ficavam de luto pela morte deles” (p. 231).

Referências

MONTAIGNE, M. Os ensaios. 1. ed. São Paulo: Penguin-Companhia, 2010. 616 p.

GRAY, J.N. O silêncio dos animais: Sobre o progresso e outros mitos. 1. ed. Rio de Janeiro: Record, 2019. 154 p.

Leia também “Voltaire: “Há algo mais abominável do que alimentar-se de cadáveres?”, “Pitágoras, o filósofo grego que condenou o consumo de carne“, “Sêneca: Vegetais são o suficiente para o nosso estômago“,

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

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