Nos livros “Aurora” e “A gaia ciência”, de 1881 e 1882, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche também apresenta alguns pontos que servem para pensarmos nossa relação com outros animais em “Os animais e a moral” e em “Crítica dos animais”.
Em “Aurora”, Nietzche observa que a partir do momento que o ser humano passou a reconhecer “as coisas vivas” como uma ameaça (2004, p. 21), como se tudo que é vivo pudesse sê-lo somente por ser vivo, ele estabeleceu uma cíclica de danos – como se não pudesse não haver um conflito entre o humano e o não humano ou como se o conflito entre eles só pudesse existir a partir dessa concepção humana de uma forma a esmagar o que é não humano.
Assim surgiu, convenientemente, uma crença na necessidade de que é preciso assegurar-se não somente das coisas quanto dos animais, através de coação, violência e sacrifícios, porque o primeiro pensamento já se estabelece pela ordem arbitrária do domínio – o que insere-se no apontamento ao que é estabelecido e perpetuado pela moral cristã ocidental.
Em “Os animais e a moral”, de “Aurora”, Nietzsche afirma que a moral social não é uma excepcionalidade humana, e que pode ser encontrada em toda parte, “até na profundeza do mundo animal” (2004, p. 22). Ele usa como exemplo capacidades sociais como a busca por igualar-se, inserir-se, ainda que as intenções se diversifiquem.
O que é visto no humano pode ser visto no não humano, mas as intenções do primeiro tendem mais à dissimulação, ou refinada dissimulação, embora não deixem de ter base em uma animalidade compartilhada, ainda que não reconhecida.
A moral é um fenômeno animal
“Também o sentido para a verdade, que é, no fundo, o sentido para a segurança, o homem tem em comum com os animais: não queremos nos deixar enganar, não queremos induzir a nós próprios em erro, ouvimos desconfiados a conversa de nossas próprias paixões, contemo-nos e ficamos à espreita de nós mesmos; tudo isso o animal entende como o homem, também nele o autodomínio nasce do sentido para o real (da prudência). E igualmente observa os efeitos que produz na noção que têm os outros animais, aprende a olhar de volta para si a partir dela, a apreender-se ‘objetivamente’, tem seu grau de autoconhecimento” (p. 23).
Nisso, Nietzsche não traz um olhar reducionista do animal, na sua condição não humana; muito pelo contrário, coloca esse olhar em questionamento. Sobre a complexidade de outros animais, e que tantas vezes foi negada por pensadores de grande influência, como Descartes, Nietzsche observa que eles também julgam o movimento de seus rivais e amigos, memorizam suas peculiaridades e orientam-se por elas. A própria referência primeira de justiça, segundo ele, existiu antes em outros animais, o que o leva a concluir que a própria moral é essencialmente animal:
“Os primórdios da justiça, assim como da prudência, da moderação, da valentia — em suma, tudo aquilo que designamos pelo nome de virtudes socráticas é animal: Se considerarmos que também o homem superior apenas se elevou e refinou no tipo da alimentação e na ideia do que lhe é hostil, será lícito caracterizar todo o fenômeno da moral como animal” (p. 23).
O filósofo alemão também reconhece como um preconceito a oposição humana à teoria de sua descendência animal – derivativo também de um pensamento em que o animal só pode ser o outro. Nietzsche conclui que esse preconceito também tem relação com o espírito, defendido como uma ausência em outros animais. E nessa reflexão, embora Nietzsche não cite Descartes, podemos pensá-lo como uma figura proeminente da filosofia ocidental que contribuiu para essa percepção, assim como o cristianismo, embora não se possa negar que tenham surgido movimentos cristãos na contramão desse pensamento.
Nietzsche diz ser essa afirmação da ausência de espírito em outros animais parte da história recente da humanidade. Esse também é um ponto em que não se pode ignorar seu peso contextual, já que se refere ao contexto ocidental e ocidentalizado.
“Na longa pré-história da humanidade pressupunha-se o espírito em toda parte e não se pensava em honrá-lo como privilégio do homem. Tendo-se feito do espiritual (juntamente com todos os impulsos, maldades, inclinações) uma propriedade comum e, portanto, vulgar, não se sentia vergonha em descender de animais […] e enxergava-se no espírito aquilo que nos une à natureza, não o que nos separa dela” (p. 26).
Logo o que é afirmado como ausente nos animais também surge para a defesa da separação entre humanos e outros animais. Assim não seria equivocado concluir que a oposição em descender deles também passa a ser parte da tradição do especismo, se é também o que ajuda a fortalecê-lo.
O humano como aquele que perdeu a sã razão animal
Nietzsche também coloca em xeque a concepção moral ainda vigente em nosso tempo e a quem se refere e a quem deve se referir, ao valer-se de um aforismo provocativo sobre o status dos animais:
“Nós não consideramos os animais seres morais. Mas vocês acham que os animais nos consideram seres morais? — Um animal que podia falar afirmou: ‘Humanidade é um preconceito de que pelo menos nós, animais, não sofremos’” (p. 187).
Em “A gaia ciência”, embora seja uma obra em que Nietzsche tenha dedicado menos reflexão sobre os animais, seus apontamentos continuam sendo provocativos. Em “Crítica dos animais”, ele pensa o animal a partir da perspectiva do animal quando, assim como também fará o seu contemporâneo Mark Twain, questiona com quem está a razão e coloca o ser humano como o problema da questão animal:
“Receio que os animais considerem o homem como um ser da sua espécie, mas que perdeu da maneira mais perigosa a sã razão animal, receio que eles o considerem como o animal absurdo, como o animal que ri e chora, como o animal desastroso” (2000, p. 130).
Para Nietzsche, até mesmo quando está morrendo o ser humano não difere de outros animais em suas reações e, se agimos como eles, é porque somos nós que expressamos o que primeiro surgiu neles.
Referências
NIETZSCHE, F. W. Aurora. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 336 p.
NIETZSCHE, F. W. A gaia ciência. 6. ed. Lisboa: Guimarães Editores, 2000. 304 p.
Leia também “Para Nietzsche, a Igreja colocou os animais abaixo de nós” e “Quando Nietzsche reagiu à violência contra um cavalo“.
Uma resposta
Excelente reflexão.