O fim da vontade de comer animais

Pintura: Hartmut Kiewert

Não teve vontade de comer nada que viesse de animais no café da manhã nem depois. De madrugada, abriu a geladeira e lembrou da última vez que fez um lanche com carnes, ovos e queijos. Sentiu desconforto na garganta, como se penas, pelos e couro a raspassem.

Viu aqueles produtos como coisas estranhas habitando sua cozinha. Não entendeu o que aconteceu, mas aconteceu, como uma vontade que se vai sem razão para voltar, sem necessidade de estar.

Noutro dia, estranhou pouca movimentação em lanchonetes, restaurantes e trailers de cachorro-quente. O açougue do supermercado estava sem clientes e os funcionários manipulavam carnes com descontentamento. De repente, jogaram o avental para o alto e foram embora.

“O que não estou sabendo? Ou será que sei e ainda não racionalizei?” Voltou para casa e a vontade de não comer nada de origem animal continuava. Ligou a TV e anunciaram que funcionários de matadouros e frigoríficos de todo o país abandonavam suas funções.

“Largavam seus uniformes e EPIs no chão e partiam sem dizer nada.” Lembrou do que aconteceu no açougue. Ninguém queria matar nem manusear. E parece também que ninguém queria comer. Só que havia resistência, havia sim.

Semanas depois, retornou ao supermercado e as carnes, oferecidas com desconto de até 90%, continuavam intocadas por consumidores. Passavam longe, incomodados, torcendo nariz. “É como se estivessem diante de um pedaço de carniça.”

Qualquer seção repleta de produtos de origem animal era como área proibida, porque muitas pessoas davam enorme volta para não passarem perto. Foi quando percebeu um sentimento que não era diferente do seu, e que se multiplicava entre a população. Carne não era só carne, leite não era só leite, e nenhum produto era somente produto.

Lá fora, ficou feliz em perceber que muitos entenderam. Contemplou o céu e um cenário em transformação ao alcance de seus olhos. As pessoas mudavam e tudo mudava com elas, principalmente suas vontades.

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Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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