Percy Shelley, um “ativista vegano” no século 19

“Esses animais são chamados à existência pelo artifício humano de garantir uma existência curta e miserável de escravidão e doenças” (Arte: Getty)

Um dos personagens mais influentes do romantismo, o britânico Percy Bysshe Shelley foi muito além da poesia e contribuiu para fazer da Era Romântica um período em que a arte e a filosofia estreitaram sua relação com o vegetarianismo.

Ao publicar os poemas “Queen Mab” e “Alastor, or The Spirit of Solitude”, e os ensaios “A Vindication of Natural Diet” e “On The Vegetable System of Diet”, Shelley chamou a atenção para os benefícios da dieta vegetariana e dos direitos animais. Considerado moderno demais para a época, sua posição vista como intransigente e pouco ortodoxa fez dele uma persona non grata em muitos círculos sociais europeus.

Controverso, defendia o vegetarianismo, o amor livre e o direito ao ateísmo em uma sociedade tradicionalmente cristã. Também abordou a importância dos direitos das mulheres e  da justiça social em prol das classes trabalhadoras.

Percy Shelley tornou-se vegetariano depois de testemunhar maus-tratos contra animais enviados para o abate. Com uma visão filosófica progressista, ele defendia que os animais não precisavam de privilégios, mas de equidade, pois, assim como os seres humanos, têm direito à vida e/ou não devem sofrer em nosso benefício.

Para Percy Shelley, o abate de animais, com a intenção de reduzi-los a alimentos, é a raiz de muitos crimes cometidos pela humanidade, assim como de muitos comportamentos imorais.

Ele sustentava que a adoção de uma dieta vegetariana e o fim do abate animal seriam determinantes para o fim das injustiças sociais, do crime e da violência. Também tinha esperança de que essa mudança abriria caminho para a implantação de um sistema econômico mais justo e que daria fim às guerras.

Influência para Tolstói e o disfarce da carne 

De acordo com o poeta britânico, o vegetarianismo era o único meio de alcançar a perfeição moral, pensamento que influenciaria o russo Liev Tolstói, um dos maiores nomes da literatura mundial.

“Somente por meio do amolecimento e do disfarce da carne pela preparação culinária que ela se torna suscetível de mastigação e digestão, e só assim a visão dos seus sucos sangrentos e o seu horror cru não despertam ódio e desgosto”, lamentou.

Mais do que o decano do vegetarianismo no século 19, é justo dizer que Percy Shelley era um protovegano, ou seja, alguém que, despreocupado com denominações e terminologias, teve grande influência sobre o surgimento do veganismo, um imperativo moral mais austero, sólido e completo em relação à defesa dos animais.

“Eu sustento que a depravação da natureza física e moral do ser humano começou com seus hábitos não naturais de vida. A origem do homem, como a do universo do qual ele faz parte, envolve um mistério impenetrável”, escreveu Shelley em “A Vindication of Natural Diet”, ensaio em que se opõe radicalmente à exploração animal em todos os aspectos.

Livre de tortura e sofrimento animal 

Na obra, argumenta que uma sociedade baseada na igualdade, justiça social e espiritualidade deve ter como ponto de partida uma alimentação livre da tortura e do sofrimento animal.

O interesse de Percy Shelley pelo vegetarianismo começou cedo. Quando estudava na Universidade de Oxford, o poeta britânico se alimentava como um eremita, levando em conta a pureza e a simplicidade dos alimentos.

Em 1812, quando completou 20 anos, adotou a dieta vegetariana estrita. Sua crença no vegetarianismo foi reforçada quando ele conheceu a Família Newton, formada por uma longa linhagem de vegetarianos estritos.

Seus amigos Thomas Jefferson Hogg e Thomas Love Peacock não gostaram da influência dos Newton sobre Shelley. Eles viam a família de vegetarianos como “um grupo de monges tolos” e logo começaram a zombar do poeta. Porém mudaram de opinião e mais tarde tornaram-se vegetarianos. Na biografia “Life of Shelley”, Hogg fala de sua aprovação e adesão ao vegetarianismo.

Frugal, a comida preferida de Shelley era pão, alimento que sempre comprou em uma mesma padaria enquanto estudou em Oxford. Em Londres, durante a permanência do poeta em Bishopsgate em 1815 e depois em Marlow em 1817, Thomas Hogg notou que o amigo mantinha-se firme na defesa do vegetarianismo, assim como fez até os seus últimos dias de vida.

Influenciado por Pitágoras e Plutarco 

Percy Shelley influenciou os mais importantes reformadores vegetarianos dos séculos 19 e 20, o que garantiu-lhe o título de primeira grande personalidade vegana da história do Ocidente, segundo a obra “In Pursuit of Percy Shelley, ‘The First Celebrity Vegan’: An Essay on Meat, Sex, and Broccoli”, de Michael Owen Jones.

Antes de virar vegetariano, o poeta romântico era um humanista e humanitarista que se alimentava com simplicidade; o que à época, e paradoxalmente, foi encarado como uma extravagância e uma excentricidade inofensiva propagada por um artista e pensador que seguia os preceitos do evangelho da gentileza e do amor universal.

Assim como o filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau, Shelley foi influenciado pelos filósofos gregos Pitágoras e Plutarco – principalmente pelo ensaio “Do Consumo da Carne”, que qualifica a “dieta da carne” como não natural ao ser humano.

O britânico escreveu que os seres humanos eram naturalmente frugívoros, logo deveriam ter uma dieta à base de vegetais. Também via como importante a abstenção de álcool. Considerava o licor fermentado como uma das bebidas mais nocivas ao homem. “Tão venenoso quanto a carne”, sentenciou.

Abdicando do consumo de alimentos de origem animal e retornando ao que dizia ser a “dieta natural” dos primeiros seres humanos que habitaram a Terra, não tardaria para a humanidade vivenciar uma evolução moral, melhorias em relação à saúde e restauração da longevidade – acreditava. “O que se come é o que se é”, dizia o poeta, crente de que a identidade humana tem relação substancial com a alimentação.

Quando a humanidade transformou animais em comida

E enquanto o homem não retornar às suas origens, ele há de ser punido, na crença de Shelley, assim como foi o mitológico titã Prometeu que roubou o fogo para dar aos homens. Em represália, o acorrentaram ao Monte Cáucaso, onde assistiu um mesmo abutre alimentando-se diariamente de seu fígado que se regenerava.

“O homem em sua criação foi dotado com o dom da eterna juventude, isto é, ele não foi feito para ser uma criatura doente como vemos agora. Ele deveria desfrutar de sua juventude e aos poucos afundar no seio da mãe terra, sem contrair qualquer doença ou sofrimento físico. Porém, Prometeu ensinou ao homem como transformar os animais em comida. Depois explicou como usar o fogo para que a carne animal se tornasse digerível e agradável ao paladar. Júpiter e os outros deuses, prevendo as consequências dessas ações, ficaram irritados com a visão que tiveram dessas novas criaturas. E para puni-los decidiram deixar que experimentassem os tristes efeitos do consumo de carne. (…) E assim o homem perdeu o dom inestimável da saúde que recebeu dos céus. Ele ficou doente, sua saúde se tornou precária, e não mais desceu lentamente até a própria sepultura”, registrou Percy Shelley em “A Vindication of Natural Diet”, publicado em 1813.

Na obra, Prometeu representa a raça humana que, contrariando a própria natureza, na perspectiva de Shelley, usou o fogo com fins culinários. Então os sinais vitais dos seres humanos foram devorados pelo abutre, simbolizando a emergência das doenças. “Seu ser é consumido em cada forma de sua repugnante e infinita diversidade”, registrou.

Shelley também encontrou no mito da criação uma alegoria semelhante, a de que Adão e Eva alçaram à posteridade a ira de Deus e a perda da vida eterna; isto porque alimentaram-se da árvore do mal, fazendo florescer a violência e a doença por meio de “uma dieta não natural”.

“O homem e os animais a quem ele infectou com sua sociedade, ou os depravou por meio de seu domínio, estão sozinhos e doentes. O porco selvagem, o muflão, o bisão e o lobo são perfeitamente isentos de doenças e, invariavelmente, morrem de violência externa ou de velhice. Mas os porcos domésticos, as ovelhas, as vacas e os cães estão sujeitos a uma incrível variedade de enfermidades e, como os corruptores da natureza, há médicos que prosperam com suas misérias”, frisou.

Humanos acima dos animais 

O ativismo de Percy Shelley fez com que o famoso e controverso poeta Lord Byron também aderisse ao vegetarianismo na juventude. Shelley tinha um grande poder argumentativo. Não possuía dificuldade em convencer aqueles que estavam mais próximos a ele a tornarem-se vegetarianos.

“As misérias, as doenças que assolam o mundo, são uma maldição conquistada pelo ser humano desde que ele colocou-se acima de seus companheiros animais. (…) Comparativamente, a anatomia sempre me ensinou que o homem se assemelha mais aos animais frugívoros, não aos carnívoros. Ele sequer tem as garras adequadas para aproveitar sua presa, nem mesmo caninos verdadeiramente pontiagudos e afiados para dilacerar corretamente as fibras da carne. Pensem no trabalho que o ser humano tem para preparar a carne, amolecê-la e disfarçar suas características naturais”, apontou em seu ensaio.

Na obra, o autor convida o leitor a refletir sobre o aspecto cru da carne e o seu suco que geram desgosto em quem consome, alegando que o homem come carne porque finge não ver carne. A quem se considera um carnívoro nato, Shelley, assim como Plutarco, faz um convite: “Experimente rasgar um cordeiro vivo.”

No século 19, ele compartilhou sua defesa do vegetarianismo ético com todos os seus contemporâneos, estendendo seus questionamentos morais a muitos outros artistas e pensadores, estreitando a relação dos românticos com o vegetarianismo. Em “Queen Mab”, de 1813, escreveu sobre sua transição: “E o homem…não agora, mata o cordeiro de quem observa a face, e terrivelmente devora sua carne mutilada.”

O mesmo excerto abre o ensaio “A Vindication of Natural Diet”. Em “A Refutation of Deism”, uma prosa publicada em 1814, ele aborda o vegetarianismo, assim como no poema lírico do quinto canto de “Laon and Cythna” ou “The Revolt of Islam”, de 1818, conhecido como “A Lírica do Vegetarianismo”. Com a delicadeza e humanidade que lhe era peculiar, sua crença no vegetarianismo também pode ser observada na abertura do poema “Alastor”, de 1816, onde ele invoca a comunhão entre a terra, o oceano e o ar por intermédio da amada fraternidade da natureza.

Shelley, na dedicação sincera a todos os seres sencientes, escreveu: “Se o uso de comida animal é, em consequência, subversiva à paz da sociedade humana, quão injustificável é a injustiça e a barbárie exercida contra essas pobres vítimas. Esses animais são chamados à existência pelo artifício humano de garantir uma existência curta e miserável de escravidão e doenças, em que seus corpos podem ser mutilados e seus sentimentos sociais suprimidos. Seria muito melhor a um ser senciente jamais ter existido do que existir simplesmente para suportar a miséria absoluta.”

Saiba Mais

Percy Bysshe Shelley era marido da também escritora Mary Wollstonecraft Shelley, mais conhecida como autora do romance “Frankenstein”.

Referências

Shelley, Percy Bysshe. A Vindication of Natural Diet, Londres. Smith & Davy. 1813.

Salt, Henry. Percy Bysshe Shelley: A Monograph. Swan, Sonnenscheim, Lowrey & Co., Londres. Originalmente publicada no The Vegetarian Annual, de 1887 (1888).

Jones, Michael Owen. In Pursuit of Percy Shelley, “The First Celebrity Vegan”: An Essay on Meat, Sex, and Broccoli. Journal of Folklore Research. Volume 53. Número 2. Agosto de 2016.

Medwin, Thomas. The Life of Percy Bysshe Shelley, Londres. Biblioteca Britânica. Domínio Público (1847).

Hogg, T.J. The Life of Percy Bysshe Shelley, Londres. Editora Edward Moxon (1888).

Blunden, Edmund. Shelley – A Life Story, Londres. Collins St. James (1946).

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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