Por que a cabeça de um peixe morto não gera incômodo?

Foto: Unparalleled Suffering

As pessoas não olham para a cabeça de um peixe separada do corpo e reagem da mesma forma em relação à cabeça de outros animais consumidos – como os mamíferos.

Mesmo quando não comem a cabeça de um peixe, não veem problema em prepará-lo com cabeça, em servi-lo com cabeça, e em comer sua carne, deixando ao final a cabeça, vista como um tipo de sobejo, restolho.

A cabeça então é uma “não cabeça”, porque é cabeça vista, porém não como cabeça – é um “algo irreconhecido”, que conecta-se ao “corpo não corpo”. Porque a ideia do “não” não é pela ausência do que é físico, mas pelo não considerado e dominado, na impropriedade de si, e assim a presente cabeça não é desconfortável.

O peixe então é um ser com quem mantém-se mais distanciamento, como “aspecto ausente”, independente da proximidade estabelecida por consumo. É percebido como “mais estranho” que os outros – “um algo” que numa dimensão de diferença assimilamos e damos forma que suprime a sua própria a partir de um favorecido alheamento.

Errado seria dizer que o peixe é um não peixe pela perspectiva do consumo? Não se ponderada a minoração de sua condição, que depende de a ideação sobre o peixe ser constituída não pelo que (quem) é, mas pelo que determinamos que (quem) seja.

São pensáveis as escalas de inconsideração em relação aos animais, porque o supremacismo humano estabelece configurações diferentes de aceitações para violências análogas contra os mais subjugados.

Exemplo para reflexão são famílias urbanas que levam suas crianças para pescar, porém não as levam para degolar nem testemunhar a degola de bovinos ou suínos – porque, mesmo se permitido, é mais difícil tornar a violência irreconhecível, ainda que passível de trivialização.

Matá-los pode configurar trauma não configurado pelo peixe que debate-se? Sim, porque nas escalas de distanciação entre o ser humano e outros animais, o incômodo é baseado no que assimila-se como “mais receptível” em relação a formas, expressões corporais, sons e volume de sangue – uma percepção estética de manutenção da crença de desvalores dentro de uma crença maior de desvalores.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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