Porco, a dor de virar bacon começa na infância

Preço do uso do alicate já vem na bandeja, mas não a foto (Foto: Acervo WAP)

Nascer com oito dentes é crime? (In)justiça conivente. Pega à força. Resiste. Não dura. Guincha, guincha. Medo, claro. Quem se importa? Não quem está ali ou quem espera o bichinho crescer e crescer pra comer.

Preço do uso do alicate já vem na bandeja, não a foto. Corta e apara, apara e corta, sem anestesia. Contorce, geme. “Rente à gengiva”. Se não fosse pra ter dente, dente não nasceria.

“Ora, é pra proteger a mãe e ele.” Já viu alguém capturando porco selvagem pra cortar dente e devolver à natureza? “É pra evitar canibalismo.” É natural? Se fosse, não existiria porco na floresta.

“É de espécie diferente, é doméstico.” É de confinamento, estresse e sofrimento. “Espere um pouco aí.” Gengiva fica vermelha. Alicate escorrega. Sangra, escorre e se debate. Diz que vai melhorar.

“Às vezes [mais, hein?], acontece. É assim mesmo.” Dentro de um latão, a coleção de pedaços de dentes. Estranho como algo que tem uma função deixa de ter porque dizem “que sim”.

Serviço completo. Dor. Mal abre os olhos. Um maior, um menor, dois menores. Oscila sim. Visão embaçada. Imobiliza. Dá nem pra chutar o ar. Mais uma vez. Também não. Socorro? Jamais. Curativo? “Pra quê?”

Jogado com outros, do antes e do depois, dor vira macabra sinfonia. Sem romantismo. Noite em claro. Nem parece bebê, mas quem vê bebê? A mãe na gaiola. Chegar perto? Nem pensar. Você aqui e você lá. Não consegue mamar. “Depois passa.”

Pertinho dali, tantos pedaços de dentes que não cabem mais no latão. Canino é preferido. Alguém chacoalha. Não tem som de lata, é diferente, ninguém sabe o que é. Guincho, gemido. “E latão guincha ou geme?” Pode ser, vai saber, dizem que a dor tem várias moradas.

“Será que tem memória mesmo?” Na quarta semana, mostra o alicate. Treme, recua, não esquece. Você esqueceria? “Mas é leitão! Leitão!” É uma vida estranha. Que vida? Nascer é perder os dentes à força? Também, e com 21 dias, perder a mãe, com cinco meses, perder a vida.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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