Quando testemunhei a degola de um boi em um pequeno matadouro, observei sua língua. Estava pendurado perto de outros. Havia sangue no chão. Era como se o piso tivesse sido tingido, e oscilava do brilho para o fosco, do fosco para o brilho.
A língua fora da boca parecia crescer. Imaginei o boi desejando tocar o chão, como se a língua pudesse ser mais forte que os grilhões e a faca, e então correndo para longe dali, para um lugar onde o corte na garganta desapareceria, e sua vida se restabeleceria.
Depois mirei os cascos, que já paravam de balançar. As orelhas de um quase tocavam a de outro. Uma estranha morte compartilhada. Cabeça de um parecia mais alongada, como se aquela morte fosse também um processo de secagem.
“E subtrair a vitalidade não é secar?” Olhei o animal ainda inteiro, com todos os órgãos que há não muito funcionavam, que parecia saudável.
“Ser saudável para morrer? O quanto isso faz sentido? Devemos ser saudáveis para viver mais e outros devem ser saudáveis para morrer mais.”
A boca do boi continuava aberta. “Como seria se ele pudesse engolir este mundo? Como seria entrar em sua pele por um instante? Ele aqui e eu ali, numa troca de corpos.”
O corpo já não se movia, nada se restabeleceria. O processo logo seria de antinomia a isso. O corpo deixaria de ser um corpo, e as partes estariam em diferentes espaços, até desaparecerem.
Pensei na experiência da faca afiada na garganta, na concussão, nos trânsitos do não humano e nos caminhões que trazem o vivo e levam o morto. Um calor terrível para o corpo que sente e um ar refrigerado para o corpo que não sente.