Quando a industrialização da morte de animais para fins de consumo estava em expansão nos EUA no início dos anos 1900, tendo Chicago como seu grande centro, Upton Sinclair decidiu publicar o livro “The Jungle”, até hoje inédito no Brasil.
A ideia de publicá-lo em formato de livro em 1906 veio após a grande repercussão da publicação serializada da obra em 1905, no jornal socialista “Appeal to Reason”, que circulava no centro-oeste dos EUA.
Quando “The Jungle” foi publicado como romance, e expondo também como a indústria da carne obrigava trabalhadores a longas jornadas de trabalho e péssima remuneração (Sinclair usa como exemplo a miserável realidade dos imigrantes lituanos), os relatos detalhados do que ocorria nessa indústria, como o abate de animais, fez muitos consumidores deixarem de comer carne.
O romance de Sinclair, que faz parte do realismo social, é fundamentado em uma realidade que ele conheceu, assim como em histórias de pessoas que trabalharam nessa indústria que, apesar disso, ainda serviria de exemplo para muitos outros países, incluindo o Brasil.
Não por acaso, fala-se de uma indústria da carne antes e depois de Chicago, que também contribuiu ao forjar um novo sistema de produção, que também podemos reconhecer como de destruição, e ajudou a acelerar o distanciamento dos consumidores em relação aos outros animais, facilitando a dissimulação que permite pensar na carne em desconexão com o animal e por um processo que à época ficou conhecido, por um eufemismo, como “desmontagem”.
Podemos lembrar que os matadouros de Chicago serviram de referência para Henry Ford montar suas primeiras linhas de produção. Na percepção dele, se animais existiam para que fossem “desmontados”, bastaria fazer o inverso em relação aos automóveis.
Talvez ele tenha sido uma das primeiras pessoas de grande influência na primeira metade do século 20 a estabelecer essa proximidade por observação em que animais poderiam, “graças ao contexto industrial”, ser vistos como “coisas”, assim como o que nunca teve vida, como os automóveis ou suas peças.
Afinal, não seria sem essa percepção de Ford que ele observaria que se há uma coisificação que pode favorecer seus interesses, melhor ainda, ou mais fácil, seria explorar o que já é por si só coisa, sem precisar do processo de coisificação. Sobre isso, sugiro também a leitura de “Campos de concentração nazistas foram ‘inspirados’ em matadouros”, algo que teve participação de Ford.
Mas voltando a “The Jungle”, uma passagem que facilmente se encaixa no que foi colocado há pouco é o relato de que porcos e outros animais adentravam o matadouro confiando nos humanos e, quando percebiam que havia algo de errado, eles “eram tão humanos em seus protestos” (2023, p. 47). Nessa observação há um reconhecimento da consciência dos animais em relação aos seus próprios interesses. “Estavam tão perfeitamente dentro de seus direitos. Eles não fizeram nada para merecer isso.”
Ainda assim, eram pendurados e não havia a pretensão de uma desculpa ou a homenagem de uma lágrima, como observado na própria obra. “Era como um crime horrível cometido em uma masmorra, tudo invisível e ignorado, enterrado fora da vista e da memória” (p. 47). Se à época já havia um reconhecimento de que tudo estava sendo afastado do olhar público, não menos está hoje, muito pelo contrário, se considerarmos que as pessoas podem comer carne diariamente por toda a vida e jamais terem contato com um animal vivo da mesma espécie do que despedaçaram para que fosse consumido.
Tudo que ocorria já era parte de um processo em que o animal já não era pensado como animal; não deveria ser visto como o que era, mas o que poderia ou deveria ser – somente carne.
“Alguns eram porcos brancos, alguns eram pretos; alguns eram marrons, alguns eram manchados; alguns eram velhos, alguns jovens; alguns eram compridos e magros, alguns eram enormes. E cada um deles tinha uma individualidade própria, uma vontade própria, uma esperança e um desejo […]; cada um deles estava cheio de autoconfiança, de autoimportância e de um senso de dignidade” (p. 48).
Na passagem acima, o romance oferece uma perspectiva conflitante com o que é feito com esses animais, porque ao reconhecê-los dessa forma, como reduzi-los a algo que contrapõe tais características? Sinclair não deixa de externar uma preocupação que é estabelecer uma antítese em relação ao que surge como símbolo de uma época como um novo passo na coisificação animal.
Com base nos próprios personagens, também miseráveis, que trabalham na indústria da carne, conciliando com seu olhar crítico, o autor, que também era um reformador social, observa que difícil era negar o reconhecimento dos animais para além do que era feito deles na indústria se houvesse uma observação sincera: “Não se poderia ficar olhando por muito tempo sem ficar filosófico […]” (p. 47). Essa é uma conclusão baseada também nas experiências dos imigrantes que dariam origem aos seus personagens. O próprio Sinclair deixaria de comer carne como consequência da concepção da obra.
Há um questionamento em “The Jungle” se não há um paraíso para os porcos, onde eles possam ser recompensados por todo o sofrimento. Embora essa questão não deixe de evidenciar que o sofrimento desses animais é resultado da arbitrariedade humana, se as pessoas acreditassem nisso, provavelmente usariam isso para perpetuar a exploração e violência contra os porcos, sob o pretexto de uma suposta compensação.
O sofrimento, nos relatos do romance, envolve também a descrição de animais amontoados em cercados e sem espaço para mudarem de posição – algo que já ocorria no início do século 20. A apreensão dos animais resultava em berros, e que se intensificava depois que um deles recebia um golpe de marreta. E as batidas e os berros ecoavam, assim como os chutes que davam no “nada”, por reação de autopreservação.
“De repente, se lançou sobre ele e o agarrou pela perna. Implacável, […] era como se seus gritos não significassem nada; […] como se os seus desejos, os seus sentimentos, simplesmente não existissem; cortou sua garganta e viu esvair sua vida” (p. 48). Essa citação evoca o processo de dessensibilização do trabalhador na desconexão com o animal que será vitimado. Mas isso normalmente não ocorre, como é observado no romance de Sinclair, sem antes enfrentar seus próprios “conflitos filosóficos”, além de ter de lidar com problemas desencadeados por esse tipo de experiência.
A obra de Sinclair é marcada pelo contraditório, já que ele traz os constantes conflitos dos trabalhadores e seus familiares em relação ao que fazem, porque vários deles não conseguem não ver o animal, algo que ocorre também como resultado de uma consciência que nem sempre pode ser silenciada. O imigrante Jurgis, por exemplo, que tenta sustentar a família, reconhece a miséria dos porcos, quando observa que não é possível ser feliz sendo um porco, mas somente não sendo, ainda que sua realidade seja de um imigrante explorado.
“Quem iria pegar esse porco nos braços e confortá-lo? […] Talvez algum vislumbre de tudo isso estivesse nos pensamentos de nosso humilde Jurgis […]”.
As descrições trazidas pelo autor sobre os animais passando de um equipamento para outro, sendo empurrados por plataformas, e como seus corpos vão sendo reduzidos a algo completamente diferente dão uma ideia desconfortável da banalização da vida, não restringindo-se somente ao ato de atordoá-los por meio de violência, arrastá-los, pendurá-los e degolá-los. Há algo mais que, mesmo já imposto ao corpo morto, pode parecer ao leitor empático aos animais, da forma realista como é apresentada, também uma violação, um vilipêndio.
Considerando o impacto que a obra teve em seu tempo fica claro que se o romance não serviu para gerar um grande antagonismo em relação à indústria da carne, e que pudesse realmente transformar a vida dos animais, indo além de um conveniente reformismo, pelo menos conseguiu mudar a mente de pessoas mais dispostas a refletirem sobre o impacto de seus hábitos.
Uma das passagens do livro que melhor reproduz o que está sendo feito ainda hoje com dezenas de bilhões de animais, e como tudo sobre eles é pensado como produtificação, é esta:
“[…] cabeças e pés foram transformados em cola, e ossos foram transformados em fertilizantes […]. Nem a menor partícula de matéria orgânica era desperdiçada […]. De coisas como pés, nós dos dedos, aparas de pele e tendões surgiram produtos tão estranhos e improváveis como gelatina, cola de peixe (isinglass), fósforo, carvão de osso, graxa de sapato e óleo à base de osso. […] eles obtiveram pepsina a partir dos estômagos dos porcos, […] e cordas de violino das entranhas malcheirosas. Quando não havia mais nada a fazer com uma coisa, primeiro colocavam-na num tanque e retiravam todo o sebo e gordura, e depois transformavam-na em fertilizante. […] Nossos amigos ouviam todas essas coisas de boca aberta – parecia-lhes impossível acreditar que algo tão assombroso pudesse ter sido inventado por um homem mortal” (p. 53).
Referência
SINCLAIR, U. 1. ed. Nova Délhi: Delhi Open Books, 2023. E-book.
Leia também “Upton Sinclair expôs crueldade na indústria da carne em 1906“, “Domínio sobre outros animais levou ao domínio sobre humanos“, “O primeiro homem que matou um boi foi considerado um assassino” e “Comer animais é um grande mal“.
2 respostas
Uma pena que esse livro ainda não tenha recebido uma edição/tradução brasileira. E ele só entra em domínio público a partir de 2038.
Ontem fiquei sabendo do lançamento de um livro agora em novembro que, acredito, trará instigantes reflexões para a causa animal.
Link do site da editora: https://www.editorazouk.com.br/pd-97360e–pre-venda-reparemos-o-mundo.html?ct=&p=1&s=1
No Instagram da editora há uma publicação sobre o livro com as fotos do sumário.